Intervenção proferida por Augusto Baptista, no Porto, em 12 de Março de 2022

 


Intervenção proferida por Augusto Baptista, no Porto, em 12 de Março de 2022


Senhor general Pedro de Pezarat Correia,

 

Estimados amigos,

 

 

Honroso é poder intervir neste encontro centrado no senhor general, centrado no meu bom amigo – permita-me tratá-lo assim. Honroso, mas inquietante: este é um desafio exigente.

Superior é a obra que desenvolveu na acção e, depois, na análise e estudo dos factos protagonizados, no quadro de um dos períodos mais ricos da nossa vida colectiva, em íntima conexão com a vida colectiva de povos com quem tanto temos a ver, com quem entrecruzámos destinos, entretecemos história.

As reflexões que empreendeu sobre a colonização, a descolonização, base da tese de doutoramento apresentada na Universidade de Coimbra e do livro posteriormente publicado, são referentes incontornáveis para estudiosos e para cidadãos atentos.

Mas não é nesta notável dimensão da sua obra e vida que me quero deter. Quero centrar-me na palavra que me levou a abraçar o convite da Associação Conquistas da Revolução para estar aqui: amizade.

As relações pessoais que nos ligam têm raízes fundas, forjadas em cadinho de fogo. Falar delas implica de algum modo avançar pelos meus passos, solução a que recorro a contragosto, mas não descortino outro caminho.

Cruzámo-nos pela primeira vez em Mafra, 1972, era o meu amigo coordenador do curso de comandantes de companhia, eu aluno, tenente miliciano graduado, regressado de uma dura experiência militar na Guiné: estágio de guerra numa companhia de soldados guineenses, sede em Mansoa.

Na Guiné confirmei a funda convicção de que a via das armas não era solução para o conflito colonial. Aí, em plena frente, colhi o sentimento de oposição à guerra que latejava nos quadros militares. Testemunhei as palavras indignadas do capelão militar do batalhão, insurgindo-se de viva voz contra a guerra, diante de um ajuntamento de militares e dos corpos  dos soldados feridos pelo rebentamento de uma mina, socorridos no posto médico.

Falava o capelão militar e naquele cenário pungente questionava o sentido da guerra, exaltava o imperativo do povo guineense lutar pelo seu chão, pela independência, enquanto nos cabia o papel do ocupante, com custos, dor, morte. Para os dois lados.

Silenciosos, os soldados que se acercaram para testemunhar a tragédia, ouviam e dispersavam em silêncio.

Recordo – como esquecer? – nas saídas para o mato, nos pequenos altos, os graduados questionarem o que estávamos ali a fazer. E nas festas no quartel, envolvendo o batalhão, recordo as piadas e mensagens sub-reptícias antiguerra, nas humoradas representações de palco.

Eram múltiplos os sinais de desagrado perante o quadro de confronto militar. Na Guiné podíamos não morrer mas pensava-se que morríamos, tal a insegurança, com a sede do batalhão em Mansoa, nos meses em que lá permaneci, a ser fustigada pela metralha do PAIGC.

Em Mafra – como há pouco referi – o meu bom amigo, então major, era o coordenador, era o responsável do curso de comandantes de companhia. Não esqueço ter iniciado uma aula sobre a Guiné a apontar para um mapa, esclarecendo que a presença guerrilheira estava aí representada pelos alfinetes de cabeça vermelha que povoavam o espaço guineense, o enfermavam de um generalizado ataque de sarampo. Olhando, ficava claro o destino da guerra.

Nesses dias, estamos em 72, a prudência impunha contenção, cuidado. Impunha sagacidade na comunicação. Através de um mapa vitimado de sarampo, sem palavras, era pronunciado um esclarecedor, um eloquente discurso sobre a situação no terreno, sobre o desfecho da guerra. E era revelado um homem, um homem de coragem, um homem de verdade. Um comandante!

A comunicação e a transmissão das ideias, sabemo-lo, impunham o recurso a códigos subliminares, a ardis. O regime vivia em sobressalto, temia a subversão. Mafra, a EPI, a Escola Prática de Infantaria, cerca de um ano antes e na sequência da morte de quatro cadetes afogados em exercícios militares, vivera um processo exaltado de insubordinação, com os cadetes do meu curso de oficiais milicianos a protagonizarem um levantamento de rancho, a promoverem plenários de protesto, a inscreverem palavras contra a guerra colonial nas paredes do quartel. A exprimirem contestação, semanas depois, na cerimónia de juramento de bandeira, perante a exasperação do comandante Hilário Marques da Gama e o pasmo das altas individualidades na tribuna.

De volta ao curso de comandantes de companhia, concluído este, fui mobilizado para Angola em rendição individual e colocado no Regimento de Infantaria 21, no Huambo. Cumprida a comissão no mato regresso ao RI21 e, nos primeiros dias de Abril de 74, sou destacado para comandar a pequena unidade militar estacionada no Lobito: um pacato fim de comissão em geografia privilegiada.

Engano meu.

Com o eclodir do 25 de Abril – de que eu só colhera incipientes indícios ao interceptar “Portugal e o Futuro”, pouco tempo antes, furtiva circulação entre mãos de oficiais em Luanda, risinhos cúmplices –, com o eclodir do 25 de Abril, o eixo Lobito, Catumbela, Benguela, e toda a província, diria, transformaram-se num turbilhão de lutas laborais, paralisações, greves, conflitos.

O capitão miliciano em fim de comissão e os seus homens, angolanos quase todos, acordam no centro do furacão. Tudo quanto diga respeito à ordem, à desordem, passa a ser incumbência da tropa, as outras estruturas encolhidas, na defensiva.

Natural foi então o estabelecimentos de ligações, fáceis, informais, efectivas, com a comissão coordenadora do MFA em Luanda e, em particular, com o comandante que em Mafra cravejara de sarampo o mapa da Guiné.

Não raras foram as idas do meu amigo e de camaradas da coordenadora do MFA ao Lobito, frequente era a troca de impressões, a entreajuda, o estreitar de relações, chegando a ser destacada uma companhia de intervenção, na previsão – estará lembrado – de situações agudas.

Com calma, serenidade, bom senso, recursos aprendidos na formação, aprendidos na vida, na acção de comando, e com o perfume da sorte, foi possível conduzir durante meses o processo, às vezes no fio da navalha, introduzir moderação nos conflitos. Mediar. Assim no Porto do Lobito, na Câmara Municipal do Lobito, na Cassequel, em pequenas e grandes empresas, quando reclamada a presença do MFA, das Forças Armadas.

O prestígio das Forças Armadas, do MFA, nesses meses de Abril estava em alta. O que por vezes conduzia a situações embaraçosas. Uma noite, chamado com carácter de urgência, caso sério, questão politica, fui parar ao espaço em que ensaiava um grupo musical.

Recebido com formalismo, logo me introduziram numa nuvem de fumo, numa tempestade de som, bateria, guitarras eléctricas, trompetes, batucadas, o vocalista embrulhado numa letra em que eu, nauseado, só conseguia entender, Aiué Spínola! Aiué Spínola! 25 de Abril! Liberdade! O que se impunha ali era saber, ali ao vivo, que isso me era perguntado aos berros, se a canção estava conforme o programa do MFA.

Mas o que prevalecia, o que imperava, eram situações de tensão séria, sobretudo laborais. A proximidade e as relações de confiança que foi possível estabelecer com o movimento sindical, com variados sectores sociais, com a população, possibilitaram que esses dias fossem vencidos sem contrariedades e com uma exemplar cordialidade entre o Povo e as Forças Armadas.

Arrisco dizer que, nesses tempos, as relações institucionais e pessoais entre a coordenadora do MFA em Luanda e as magras forças destacadas na Província de Benguela também foram cruciais para aí ultrapassar um período de tanto melindre político-militar e conflitualidade. Com a própria instituição militar a reflectir a tensão desses dias.

Com o final da comissão rumei ao Huambo, depois a Luanda. Aqui, em articulação com a comissão coordenadora do MFA, fui destacado para a Secretaria de Estado do Trabalho do Governo do Senhor Almirante Rosa Coutinho, assessorando o secretário de estado, capitão Fonseca de Almeida.

Pós-Alvor, regressado a Portugal – dispensados os meus préstimos em Luanda pelo já Alto Comissário general Silva Cardoso – ainda me cruzei com o meu bom amigo aquando de uma curta missão em Lisboa como delegado do MFA nos CTT/TLP. E haveríamos de nos voltar a cruzar, já em Angola independente, onde, terminada a vida militar, voltei em missão de cooperação em 1976 até meados dos anos 80.

Se me for consentido exprimir estados de alma, direi que esta vivência em Angola, o período em que lá residi após a independência, com todas as contrariedades, dificuldades, privações, foi dos mais fecundos, exaltantes e ricos da minha vida. Fiz o que estava ao meu alcance para ajudar, com o meu trabalho, a resolver os problemas do povo, o mais importante, como dizia Agostinho Neto. E fi-lo também, eu e outros, muitos outros portugueses, residentes e cooperantes, erguendo em Angola, em Luanda, a Associação 25 de Abril. Associação cuja sede o senhor general nos deu a honra de inaugurar. Tal qual a Rua 25 de Abril, onde ela mora. Associação 25 de Abril que o senhor general nos dá o privilégio de integrar como Sócio de Honra, a par de Agostinho Neto, José Eduardo dos Santos, Afonso Van-Dunem M’Binda, Diógenes Boavida, Alcântara Monteiro, Paulo Jorge, Lúcio Lara, Nelson Mandela, Rosa Coutinho, Vasco Gonçalves.

Nestes múltiplos e gratificantes cruzamentos chegamos aqui. E aqui lhe transmito o meu apreço pela amizade que fomos urdindo em diferentes circunstâncias, em diferentes geografias e tempos.

Em meu nome, em nome dos meus companheiros da Associação 25 de Abril em Luanda, aqui lhe testemunho reconhecimento pelo modo como abraçou e abraça Abril, a descolonização, a Paz. Como soube registar memória, construir um corpo conceptual tão fecundo e referenciador nos universos que protagonizou e protagoniza. Aqui lhe exprimo admiração pela honradez, pela lisura de carácter, pelo rigor, pela inteligência.

Termino com um abraço. E a esperança de que a Paz encontre abrigo no coração do mundo: Abril, sempre!