Texto Periódico V - Evocando Abril



EVOCANDO ABRIL

Pouco mais de um mês passado do 25 de ABRIL de 74, instala-se em sede própria o MDP/CDE, em Ponta Delgada. Todas as noites lá se juntavam muitos jovens militares e antifascistas da terra, com provas dadas de luta e que com eles queríamos aprender tudo. Dos frequentadores, havia de todos os géneros: desde um arquitecto, trotskista, neto de Keil do Amaral, que os seus óculos redondinhos não enganavam, jovens maoistas, revolucionários, convictos da revolução cultural e outros como eu.

O MDP/CDE, antecipando-se à dinamização cultural do MFA, inicia logo algumas sessões de esclarecimento, junto ao povo profundamente religioso e pouco reivindicativo ou ainda medroso por tudo o que pudesse vir a acontecer, avisados pelo Senhor pároco da freguesia.
Numa dessas primeiras sessões por terras do concelho de Nordeste eu fazia parte da mesa, apenas e ainda a aprender e pouco interventivo.
Os homens falavam das suas preocupações, do pouco valor de venda do leite às queijarias, tal como o preço da beterraba vendida à fábrica de açúcar e da dificuldade do escoamento da batata pela abundância dela, naquele ano, quando, já no final, temos uma única intervenção de uma senhora com muita idade, de xaile preto sobre a cabeça a queixar-se do aumento do preço do açúcar para açucarar os seus dias e o seu café de cevada, principal alimento dela acompanhando uma côdea de pão: uns dias mais seca, outros dias mais mole.
Pela minha ascendência rural, a senhora comoveu-me muito tanto pela sua coragem de falar “em terra de homens”, como pela sua pobreza e intervenho de rompante, tendo sido mimoseado com a maior salva de palmas daquela noite e parece-me que da minha vida, numa ou outra intervenção que tenha feito.
Já não me recordo o teor da intervenção, mas se a recordasse, hoje diria que teria sido uma intervenção populista duma esquerda inconsequente. Talvez!
Mas quando estamos com o povo, fazendo parte desse povo traído na revolução, precário, explorado de baixos salários que não dão para o “açúcar” de todos os dias não há pároco algum de qualquer freguesia que nos ou vos amedronte. E, hoje, passados 46 anos faço uso das palavras do General Vasco Gonçalves:
 “O FUTURO COM QUE SONHEI NÃO É CADA VEZ MAIS SAUDADE, É, SIM, CADA VEZ MAIS NECESSIDADE IMPERIOSA. ASSIM O POVO O COMPREENDA”

Manuel Carvalho
(Vogal da Direcção da ACR)

Homenagem póstuma ao Eng Martins Nabais






Faleceu no passado dia 16 de Abril, o Capitão-de-Mar-e-Guerra, Armando Martins Nabais.
Nasceu em 1925, frequentou o Instituto dos Pupilos do Exército e teve uma carreira naval variada. Desempenhou Comissões de Serviço em diversos navios e Unidades Navais, destacando-se as Fragatas Diogo Gomes e Nuno Tristão e o Patrulha S. Nicolau. Em terra passou pela Base Naval de Lisboa, Comando da Flotilha de Navios Patrulhas, Escola Náutica, onde foi professor, Comando da Defesa Marítima de Stº António do Zaire, Direcção das Construções Navais e Superintendência dos Serviços do Material.
Revelou-se sempre um oficial competente e distinto a que corresponderam diversas condecorações.
O Engº Nabais foi um homem com quem mantive uma relação especial de amizade e para quem tenho uma dívida de gratidão.
Teve uma importância decisiva na minha formação política. Nos finais dos anos sessenta, em muitas conversas de almoço em diversos navios da flotilha de patrulhas, com inteligência e método, transformou a minha forma de ver o mundo, dissecando os fundamentos da ditadura, demonstrando o erro da guerra colonial e descrevendo a tragédia da servidão humana.
Conseguiu assim, para um jovem 2ºTenente que era eu, marcar o início de uma vontade de transformar o panorama social e político em que se vivia.
Tive o prazer de lho dizer numa sessão pública e hoje sinto-me orgulhoso de o ter feito.
Era um homem sóbrio, tímido em quem se podia confiar; um ser humano límpido e ao mesmo tempo luminoso.
Deixava-nos sempre com a sensação de tempo ganho quando falávamos com ele, apreciando os ensinamentos que sempre transmitia. Lutou em muitas frentes. Abraçou com entusiasmo a Revolução. Nesta época, voltamos a encontrar-nos, agora numa situação diferente, a partilhar os ideais, os projectos, a amizade e admiração pelo General Vasco Gonçalves.
Foi desinteressadamente valioso para todos nós.
Demonstrou muitas vezes a sua firmeza e coerência ideológica em situações como as que viveu, como delegado do MFA, nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.
E também não era homem para falar da prática sem bases teóricas, que as tinha sólidas, seja na área cultural, humanística ou política.
Viveu o suficiente para que o tempo não fosse para ele um inimigo cruel, porque teve oportunidade de nos transmitir o muito que experimentou.
Ver um querido amigo terminar o conteúdo do seu tempo é como se o nosso crepúsculo tivesse perdido a luz.
Saberemos honrá-lo.

Manuel Begonha
(Presidente da Mesa da Assembleia Geral)

Textos periódicos IV - Amargo a 19 de Dezembro, Bom Ano Novo a 1 de Janeiro



VALDEMAR SANTOS
(vogal da direcção)

   O Museu do Trabalho Michel Giacometti, em Setúbal, foi ponte de encontro para o desdobramento de uma iniciativa de evocação de Vasco Gonçalves e Rosa Coutinho na quinta-feira, 14 de Dezembro, ao fim da tarde, porquanto ali recolheu o testemunho dos Comandantes Manuel Begonha, Presidente da Associação Conquistas da Revolução, Henrique Mendonça e Manuel Marques Pinto, e do Coronel Nuno Pinto Soares, numa sessão que teve de seguida o encaminhamento - como que uma marcha, - para, a poucos metros, no Quebedo, o Restaurante “Egas”, segundo local de encontro-convívio fortemente marcado por uma rica componente cultural.
   Efectivamente, o “Egas” há décadas era conhecido como “Academia Sapec”, pois o seu proprietário, Jerónimo Bárbara, assumiu tal sobrenome nos tempos em que era barbeiro tanto quanto patrono de encontros de tertúlia, nos quais trabalhadores e intelectuais entrelaçavam a defesa do 25 de Abril na herança de ajuntamentos conspirativos e de resistência antifascista, sendo aquele espaço uma taberna ela própria herdeira de uma antiga adega.
   As canções, entre muitas outras, de José Afonso e de Adriano Correia de Oliveira - a tão poucos dias do 19 de Dezembro, data do assassinato de José Dias Coelho, em Alcântara, Lisboa, no ano de 1961, fazendo irromper “A morte saiu à rua” - tiverem os acordes de David Carlos, o velho bate-chapa setubalense, e do advogado Manuel Guerra Henriques, este também excelente cantador do fado de Coimbra, a que se juntaram Octaviano Sales e, vindo do Barreiro, Armindo Fernandes, enquanto Fernando Casaca, actor e Director do Teatro do Elefante, puxou pelo “Força, força, Companheiro Vasco” e escolheu para leitura o trecho de Bertolt Brech fazendo justiça aos “imprescindíveis”.
   Vítor Zacarias, Presidente a um momento da Comissão Administrativa após a Revolução, foi portador da saudação de Francisco Lobo, igualmente membro da mesma e mais tarde Presidente do município sadino, anfitrião não poucas vezes do General. E para que nada faltasse (julgávamos nós), talvez um só dos cerca de 50 participantes soubesse que o “Sapec” assim era chamado porque fazia esperar os clientes a monte enquanto lhes dizia: “Se eu quiser trabalhar vou para a Sapec!”
   Já não estamos no tempo do sussurro, mas houve explicação entre mesas: era assim que ele promovia um certo tipo de concentração.
   Mas o balanço à posteriori anotou uma falta, sim.
   Marcaram presença os filhos de Vasco Gonçalves, Maria João e Vítor. Ora algo pudera ter ser dito sobre uma foto (quanto ao recheio nas paredes de símbolos da pesca, da Baía ou desportivos vitorianos, instrumentos de música e canção, outras fotos dos que fazem som, de figuras ilustres, quer políticas, quer religiosas, de reproduções fidedignas do papelinho-bíblia de antes do 25 de Abril - nada de misturas, do tal jornal para distribuir e engolir nos apertos, - de casalinhos… ide lá, com recomendação)… sobre uma foto de dois Comandantes a jogarem golf, o mais certo nas Caraíbas: Fidel de Castro e Che Guevara.
   É o Che que vai sticar. Fidel observa-o, e vá lá agora jurar que fora assim mesmo que prevenia o compañero: “Não desacertes!...”, como insinuam.
   Sim, é verdade que não podemos esquecer a carta de condolências a Aida Gonçalves daquele que a 1 de Janeiro de 1959, não tarda há 60 anos, comandou a derrocada do ditador Fulgêncio Baptista, logo que faleceu “el amigo inolvidable de nuestra Revolución” (“Vasco, nome de Abril”, edição da ACR de Julho de 2014).   
   Revolución, Vasco nome de Abri, Valores: duram.

Para o dia 25 de ABRIL



Apesar do confinamento a que estamos sujeitos não deixamos de comemorar este dia.

     Esta é a madrugada que eu esperava
     O dia inicial inteiro e limpo
     Onde emergimos da noite e do silêncio
     E livres habitamos a substância do tempo 
     (25 de Abril - Sophia de Mello Breyne Andresen)
Indo ao encontro do pedido da Comissão Promotora e para que a nenhum dos nossos sócios falte a documentação necessária enviamos as letras da Grândola e do Hino Nacional (esta última reproduz uma targeta de que a "Tabacaria Costa" ofereceu "aos seus compatriotas que vieram a Lisboa festejar o primeiro aniversário da implantação da República).
Enviamos também o link já montado para se ouvirem as duas músicas.

25 de ABRIL SEMPRE!

Textos periódicos III - LEMBRANDO UM CRIME CONTRA ABRIL



A propósito do livro de Daniela Costa
Uma bomba a iluminar a noite do Marão
(Edições Afrontamento, Porto)
 Jorge Sarabando



Há 44 anos, um atentado bombista matou dois jovens transmontanos na flor da vida: Maximino de Sousa e Maria de Lurdes Correia. Foram vítimas do ódio político. O Padre Max, assim conhecido na comunidade, era tido como um Padre com ideias comunistas, e a Maria de Lurdes era uma jovem estudante, alegre e espontânea, a quem dera boleia.
Tratou-se de um crime político, planeado e executado por um comando da rede terrorista da extrema-direita, com apoios locais, que aconteceu numa fase já declinante do processo revolucionário, justamente em 2 de Abril de 1976, dia em que o Presidente da República, General Francisco da Costa Gomes, promulgou a Constituição, no momento seguinte à sua votação final.
O golpe de 25 de Novembro acabou com a fase mais criadora da Revolução. O Governo e a Assembleia Constituinte continuaram em funções, mas havia forças que pensavam poder ainda reverter o curso da História. O período entre Novembro de 75 e Abril de 76 foi dos mais violentos e mortíferos, tendo sido cometidos 97 atentados bombistas. Lembro o assassínio a tiro, na própria noite de 25 de Novembro, do operário vidreiro e sindicalista António Almeida e Silva, numa rua do Porto, a morte de Rosinda Teixeira, em Santo Tirso, de duas pessoas da Embaixada de Cuba, de um cidadão junto do CT Vitória, do PCP, em Lisboa, vítimas de explosões, sem esquecer, noutro quadro, a morte, por disparos da GNR, de quatro pessoas, numa pequena multidão que se manifestava pacificamente, no final do ano, junto à cadeia de Custóias, onde estavam detidos militares de esquerda, acusados de envolvimento no 25 de Novembro. Foi nessa época que ocorreu o atentado bombista na Câmara Municipal de Vila Real, que por pouco não atingiu o Presidente da Comissão Administrativa, Rogério Fernandes, conhecido militante do PCP e amigo do Padre Max. Foi na mesma altura que uma bomba destruiu o carro do médico de Chaves Maximino Cunha. O crime infame que vitimou o Padre Max e a estudante Maria de Lurdes não foi um caso isolado.
Um dos méritos do livro de Daniela Costa é o de mostrar o outro lado da História, para além dos números, dos factos e da sua interpretação. São as pessoas, os seus sonhos, as vivências, as emoções, os desejos, os conflitos, o sofrimento, o enfrentamento de interesses, o entorno social, o caldeio de lutas, a miséria moral e a grandeza humana, os acasos e as causas, o encanto e o desencanto, a sordidez dos actos e a beleza da vida, a inquietação, a magia, o mistério, o egotismo e a generosidade e o amor em dádiva, tudo isto, e muito mais do que isto, flui na leitura de um texto que transcende o tempo e o lugar.
Outro mérito advém do modelo narrativo. A voz da autora desdobra-se em outras vozes, todas elas com densidade própria, coloração, respiração, e uma autenticidade que nos transporta às fragas do Marão e às lonjuras, ao cheiro da terra, e aos socalcos do Douro, lá onde a mão humana esculpiu a paisagem. Uma escrita com rara mestria que permitiria mesmo uma expressão cénica pois, uma a uma, em diferentes registos, como que se apresentam num proscénio.
Logo de início uma primeira figura, antecedendo as demais, assim fala: “Os meus dedos grossos de trabalho e velhice arranham-me as maçãs do rosto de cada vez que enxugo estas lágrimas que não me deixam”. E com isto se anuncia o dramatismo da acção.
Em outras falas se cruzam palavras como sonho, fuga, liberdade, que lembram aquele verso de Torga “ grandes serras paradas à espera de movimento”. E com isto se define a essência de uma contradição: a fixidez, a imobilidade do que está, e a mudança a que se aspira.
Outra figura diz detestar um quadro torto e uma sala desarrumada. E com isto revela a fonte do desajustamento que o incomoda: não é a desordem das coisas mas sim a desordem das pessoas que não aceitam a perpetuação das desigualdades.
As figuras sucedem-se cada uma com o seu testemunho. Sempre ausentes e sempre presentes lá estão o Padre Max e a Maria de Lurdes através das palavras de quem os conheceu, e amou ou odiou.
Lá vem aquela suposta avó, mulher do campo digna, honesta, carinhosa, a quem os filhos emigrantes permitiram uma vida melhor na cidade, e que tanto estimava o seu hóspede Padre Maximino.
Lá vêm os colegas da Lurdes e alunos do Padre Max, a quem este apoiava com aulas gratuitas para poderem prosseguir os estudos.
Lá vêm os sacerdotes amigos de Max, um mais compreensivo, outro mais distante.
Lá vem o prelado com suas blandícias, espelhando as contradições da Igreja.
E o cacique de direita e suas más companhias.
E o grande proprietário do Douro a quem um dia as trabalhadoras reclamaram o justo pagamento.
E uma colega que juntava a altura da sua condição social à baixeza dos seus sentimentos.
E o filho família, de raiva exposta e verbo radical, um tanto aventureiro.
E o activista sindical da UDP que lutava na empresa por melhores salários.
E gente da rede terrorista e dos interesses de classe que serviam.
E o advogado, corajoso e persistente, que não deixou cair o caso na obscuridade.
E personagens luminosas, por ideais e afectos, e outras sombrias, pela trama de ódios e violências.
Uma a uma chegam ao proscénio e falam, os discursos não se cruzam mas vão construindo um quadro. Os percursos pessoais, as relações humanas, onde não falta um enredo amoroso e, em fundo, o eco de lutas sociais, pela devolução dos baldios aos povos, pela justa paga do trabalho nas vindimas e na apanha da azeitona, ou em torno da Gestão da Casa do Douro.
Foi a época das grandes manifestações, como a que foi organizada pela Igreja, com pretexto no caso da Rádio Renascença, mas que, talvez por diligências do PCP, designadamente junto do Bispo, e um Apelo dirigido aos cristãos de Vila Real, não causou violências, como, entre outras cidades, aconteceu em Braga, onde o Centro de Trabalho foi destruído.
Ou a manifestação em Lamego contra os militares do MFA da Comissão de Gestão da Casa do Douro. “Nem Cunhal nem Pardal” era o grito de guerra de uma multidão arrebanhada pelos caciques e que chegou à Assembleia Constituinte pela voz de um deputado da região.
Cenas da luta de classes em Trás-os-montes, dir-se-á. O livro de Daniela Costa é isto, mas é muito mais do que isto, porque tem o dom da boa literatura: desde início a leitura nos prende e logo nos transporta e nos situa num outro mundo, e nos coloca dentro de uma história, como se tivéssemos também conhecido e convivido com o Padre Max, um jovem bom, generoso, um cristão convicto, um homem de fé.
Falámos das vítimas, falemos agora da rede terrorista a que já nos referimos, responsável por 566 actos violentos, entre Maio de 75 e Abril de 77, entre os quais 310 atentados bombistas e 194 incêndios e assaltos, tendo como alvo forças de esquerda e o movimento sindical.
Quem a constituía? O ELP, o MDLP, a rede Maria da Fonte e outras organizações congéneres, que tinham como base logística a Espanha franquista, onde actuavam com nomes de fachada como a empresa Tecnomotor ou a Fundação Nossa Senhora de Fátima. Uma das melhores fontes para conhecer este mundo sórdido é o livro de Maria José Tíscar “A contra-revolução no 25 de Abril” (edições Colibri).
Quem a dirigia? Inicialmente antigos dirigentes da PIDE como Barbieri Cardoso e Cunha Passo, ou o inspector Meneses Aguiar ou o legionário Rebordão Esteves Pinto, a que se juntou depois a corte spinolista que fugiu para Espanha, após o golpe falhado de 11 de Março.
Quem eram os efectivos? Antigos agentes da PIDE e legionários, alguns colonos inconformados, mercenários, fascistas convictos, gente a mando dos caciques, um certo lumpen de fácil recrutamento.
Quem os financiava? Banqueiros e grandes empresários que nunca aceitaram o 25 de Abril e muito menos o rumo socialista que tomou e veio a ser consagrado na Constituição, além de conhecidas agências de países da NATO.
Os crimes foram punidos? As primeiras prisões são do verão de 76, efectuadas pela Directoria do Porto da Polícia Judiciária, mas poucos foram os autores morais e materiais presos e menos os condenados. Em geral beneficiaram de uma teia de cumplicidades que lhes permitiu encontrar boas soluções de vida, e alguns vieram até a ser distinguidos pelo poder político emergente.
Houve mesmo quem publicasse livros em que se gaba dos seus feitos. Foi o caso de um tal Manuel Gaspar, de quem o jornalista Ricardo Saavedra escreveu as memórias (O Puto, edições Quetzal). Depois de ter participado no golpe racista de 7 de Setembro de 74 em Moçambique, donde era natural, e na marcha até Luanda com as forças sul-africanas que tentavam impedir a independência de Angola em 11 de Novembro, sob a direcção do MPLA, desembarcou em Portugal, onde logo entrou ao serviço da rede terrorista. É um dos participantes confessos no assassínio do Padre Max e da Maria de Lurdes que, nas pgs, 337 a 340, descreve com detalhe. É um relato impregnado de cinismo onde defende, como é habitual nestes casos, que a intenção não era matar mas apenas assustar. Começa, com certo gáudio, a descrever a cena em que “à hora certa”…”lá vinha Maria de Lurdes, toda fresca e radiante nos seus dezoito ou dezanove anos”, para terminar explicando as mortes: “Só que o destino do casal, infelizmente, estava traçado, e contra o destino não há planos que resistam”. Por curiosidade se acrescenta que o indivíduo esteve preso em Alcoentre, por outras acusações, donde fugiu passado pouco tempo.
No mesmo livro se transcreve um artigo do jornal fascista A Rua, de 8 de Junho de 77, onde se fazia a afirmação de que a Maria de Lurdes estava “grávida de 3 meses”, que ficou provado, mais tarde, ser uma abjecta calúnia.
O fascismo não é coisa do passado, está de regresso e em força. Há uma direita tradicional, que se move no campo democrático, que tem da violência fascista uma visão instrumental pelo que possa ser útil para os seus interesses de classe. Tende a contemporizar ou condescender porque teme, acima de tudo, o ascenso revolucionário que a crise do capitalismo possa gerar nas classes trabalhadoras. A grande burguesia, a alta finança, têm com as organizações fascistas laços de cumplicidade e mesmo vínculos orgânicos, muito resguardados. Como aconteceu nos anos 20 e 30 com os resultados conhecidos. Como aconteceu em Portugal nos anos da Revolução. Como hoje vai acontecendo na Europa ou no continente americano.
O livro de Daniela Costa, para além do valor literário que tem, é um contributo mais para conhecer a revolução e a contra-revolução no Portugal de Abril.
É a memória que nos constrói, como cidadãos livres numa democracia plena.


Jorge Sarabando
2020 Abril

Textos periódicos II - Vasco Gonçalves na cimeira da NATO - por Henrique Mendonça; vice presidente da Assembleia Geral


Vasco Gonçalves na cimeira da NATO

Estamos em Maio de 1975, inicio do verão quente e tenebroso.
No final de Maio, em 29 e 30 de Maio, realizou-se a 3ª cimeira dos chefes de governo dos países da NATO.
Estas cimeiras são realizadas periodicamente para reunir os chefes de estado ou os primeiros ministros dos Estados membros, com objectivo de tomar decisões relativas a questões económicas e políticas que possam afetar os países membros.
Na NATO as línguas oficiais são o Francês e o Inglês.
Portugal fez-se representar pelo Primeiro Ministro, Gen. Vasco Gonçalves, e pelo Alm. Rosa Coutinho.
Vasco Gonçalves teve o cuidado de informar o nosso embaixador na NATO, Freitas Cruz, que o seu discurso, em nome do nosso país, seria feito em português.
Debalde o embaixador tentou convencer Vasco Gonçalves para proferir o discurso numa das línguas oficiais.
Por fim chegou-se a uma solução,Vasco Gonçalves proferia o discurso em português e facultava-se às tradutoras a versão em inglês e em  francês.
De salientar que em 29 de Maio quer Gerald Ford quer Helmut Schmidt, nos contactos bilaterais, procuraram intimidar arrogantemente o “nosso primeiro”. 
Nesses contactos, Vasco Gonçalves, falou sempre em português traduzido por um tradutor da nossa confiança, respondeu com imensa calma desmontando todas as questões por eles levantadas.
No dia 30 todos aguardavamos, espectantes a intervenção portuguesa. Até as interpretes estavam nervosas.
Quando Vasco Gonçalves iniciou o seu discurso fez-se um enorme silêncio na sala.
No final uma das tradutoras diz-me:
Este vosso Primeiro Ministro deve ser uma pessoa extraordinária. Gostei muito de ler o discurso dele. Não sei português mas pela entoação sentida da sua voz percebia-se muito em que ponto do discurso ele ía.

Poderão ler extractos do seu discurso abrindo o link
https://www.marxists.org/portugues/goncalves-vasco/1975/05/30.htm

Henrique Mendonça
6 de Abril de 2020

Escrito do Presidente da Mesa da Assembleia Geral, Manuel Begonha



Tempos Difíceis

A humanidade encontra-se hoje à mercê de duas soluções desenhadas pelos seus dirigentes.
Ou se salvam as pessoas ou se salva a economia, ou de outra forma, ou prevalece a fraternidade ou o individualismo agiota. 
Está a ser rudemente posta à prova a bondade intrínseca da natureza humana. Quantas mortes, quanta pobreza, quantas vidas destroçadas.
Os detentores do poder mundial, parecem esquecer que há pontes que por vezes não podem ser atravessadas 
Podem destruir-se.
Mas neste tempo de contrastes, também se manifestam as melhores virtudes do homem - tanta dedicação, tanta bondade, tanto altruísmo e tanta heroicidade.
E os mais velhos perceberam que há quem entenda que andam a mais por este mundo. Confrontam-se com a eutanásia tecnológica.
Quanta ingratidão!
Como escreveu Miguel Torga, "A velhice é isto - ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez". 
Entretanto, depois na acalmia virão os oportunistas, os catastrofistas e os populistas apresentar a factura ao governo e aos serviços pela incapacidade, inépcia e inadequabilidade dos actuais modelos de gestão políticos, económicos e sociais e lutar por dividendos para as virtudes do neoliberalismo e filo fascismo. 
Mas estou seguro que iremos vencer porque temos uma revolução por cumprir. 
Porque temos ideais que queremos transmitir aos mais jovens. 
Porque queremos um mundo diferente onde o homem livre e a justiça imperem. 
Porque somos combatentes pela Paz e por uma Terra sem desequilíbrio ecológico. 
Porque não queremos que o medo pense de mais. 
Porque havemos de ter a valentia dos Lacedemónios de quem o rei Agis dizia "Eles não perguntavam quantos eram os inimigos, mas onde estavam os inimigos."

Lisboa, Março de 2020
Manuel Begonha