A Constituição de 1976 e o Preâmbulo de todas as utopias[1]
Dulce Simões[2]
A marcha da história é um contínuo fluir do presente. Por isso necessitamos ter os olhos postos no futuro, com clarividente extrapolação das lições do passado.
(Francisco Costa Gomes, 1976).[3]
Há um outro problema também muito importante para o povo português; é definir bem quem é o seu inimigo, porque há uma coisa que não devemos esquecer (…) é que a reação e o fascismo ainda não morreram em Portugal.
(Vasco Gonçalves, 1976)[4]
A identidade revolucionária da democracia portuguesa foi forjada na continuidade da resistência antifascista, e no Movimento das Forças Armadas (MFA) “como uma espécie de braço armado do Povo”.[5] Os objectivos do “Programa do MFA” justificaram o preâmbulo da Constituição aprovada a 2 de Abril de 1976, que dotou a Assembleia da República de poderes de revisão constitucional. Este documento, fundador da Democracia portuguesa, foi elaborado por deputados eleitos por 91,66% dos portugueses e das portuguesas, que a 25 de Abril de 1975 elegeram a Assembleia Constituinte. Esta ficou composta por 116 deputados do PS (37,87%), 81 do PPD (26,39%), 30 do PCP (12,46%), 16 do CDS (7,61%), 5 do MDP (Movimento Democrático Português) (4.14%), 1 da UDP (União Democrática Popular) (0,79) e 1 da ADIM (Associação para a Defesa dos Interesses de Macau) (0,03%).[6]
A 2 de Abril de 1976, nesse mesmo dia histórico em que ficaram inscritos na Constituição as conquistas da Revolução de Abril, o padre Maximino Barbosa de Sousa e a estudante Maria de Lurdes Correia, militantes da UDP, foram assassinados por elementos do MDLP - Movimento Democrático para a Libertação de Portugal, sob o comando político do general António de Spínola e operacional de Alpoim Calvão, a que pertenceu Diogo Pacheco de Amorim (atual deputado do Chega). Recordo aqui a complexa rede de extrema-direita que nesta época encetou uma cruzada anticomunista no norte do país, com atentados bombistas a sedes de partidos de esquerda (principalmente do PCP), roubos e assassinatos, apoiada, protegida e financiada por industriais, empresários, forças de segurança, magistrados e militares (como Pires Veloso comandante da região militar Norte) e por elementos da hierarquia da igreja (como o cónego Melo) com ligações a partidos emergentes. Às organizações terroristas sediadas em Espanha, ao aconchego da ditadura franquista, como o MDLP e o ELP - Exército de Libertação de Portugal, de Agostinho Barbieri Cardoso (ex-subdiretor-geral da PIDE/DGS), juntaram-se mercenários opositores à independência das ex-colónias e revanchistas que traficavam armas e influências. Num contexto político de uma suposta “normalização democrática” as organizações de extrema-direita atuaram impunemente, com ligações ao poder político, judicial e militar, à CIA e a outros serviços secretos. Na sessão final do julgamento, os réus foram absolvidos por falta de provas, e o tribunal atribuiu a responsabilidade dos assassinatos do padre Max e da Maria de Lurdes ao MDLP. Posteriormente, o general António de Spínola foi amnistiado e promovido a marechal, Alpoim Calvão foi condecorado com a medalha de comportamento exemplar em 2010, e ao cónego Melo, a Câmara Municipal de Braga ergueu uma estátua.[7]
A Constituição de 1976 refletia no seu articulado as opções políticas e ideológicas decorrentes do período revolucionário que consagrava a transição para o socialismo, baseadas na nacionalização dos meios de produção, no poder popular e na participação do Movimento das Forças Armadas no exercício do poder político, através do Conselho da Revolução.
Ao longo dos anos o texto constitucional sofreu sete revisões. A primeira, realizada entre Abril de 1981 e 30 de Setembro de 1982, eliminou a carga ideológica herdada da Revolução, flexibilizou o sistema económico e redefiniu as estruturas do exercício do poder político, sendo extinto o Conselho da Revolução e criado o Tribunal Constitucional. A título de exemplo, assinalo aqui algumas das alterações verificadas:
No Artigo 1.º (República Portuguesa)
Portugal
é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade
popular e empenhada “na sua transformação numa sociedade sem classes”. O
texto original (sublinhado) foi substituído por: “na construção de uma
sociedade livre, justa e solidária”.
O Artigo 2.º (Estado democrático e transição para o socialismo) foi substituído por: (Estado de direito democrático)
A
República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na
soberania popular, “no respeito e na garantia dos direitos e liberdades
fundamentais e no pluralismo de expressão e organização política democráticas,
que tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a
criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes
trabalhadoras”. O texto original (sublinhado) foi substituído por: “no
respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e
na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia
económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.
No Artigo 3º (Soberania e legalidade) foi suprimido o ponto 2:
2. O Movimento das Forças Armadas, como garante das conquistas democráticas e do processo revolucionário, participa, em aliança com o povo, no exercício da soberania, nos termos da Constituição.
No Artigo 9.º (Tarefas fundamentais do Estado) foi suprimido a alínea c) do articulado:
c) Socializar os meios de produção e a riqueza, através de formas adequadas às características do presente período histórico, criar as condições que permitam promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo, especialmente das classes trabalhadoras, e abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem.
O Artigo 10.º (Processo revolucionário) foi totalmente suprimido:
1. A aliança entre o Movimento das Forças Armadas e os partidos e organizações democráticos assegura o desenvolvimento pacífico do processo revolucionário.
2. O desenvolvimento do processo revolucionário impõe, no plano económico, a apropriação colectiva dos principais meios de produção.
O artigo 50.º (Garantias e condições de efectivação) também foi totalmente suprimido:
A apropriação colectiva dos principais meios de produção, a planificação do desenvolvimento económico e a democratização das instituições são garantias e condições para a efectivação dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais.
No Artigo 82.º (Intervenção, nacionalização e socialização) foi suprimido o ponto 2:
2. A lei pode determinar que as expropriações de latifundiários e de grandes proprietários e empresários ou accionistas não dêem lugar a qualquer indemnização.
A parte III da Constituição de 1976 (Conselho da Revolução), que abrangia os artigos 142.º a 149.º foi integralmente suprimida.
No artigo 157.º (Incompatibilidades) foi suprimido o ponto 1:
1. Os Deputados que sejam funcionários do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas não podem exercer as respectivas funções durante o período de funcionamento efectivo da Assembleia.
No artigo 185.º (Governo / Função e estrutura) foi suprimido o ponto 2:
2. O Governo define e executa a sua política com respeito pela Constituição, por forma a corresponder aos objectivos da democracia e da construção do socialismo.
No artigo 199.º (Responsabilidade civil e criminal dos membros do Governo) foi suprimido o ponto 1:
1. Os membros do Governo são civil e criminalmente responsáveis pelos actos que praticarem ou legalizarem.
Em 1989, a 2.ª Revisão Constitucional contemplou uma maior abertura ao sistema económico, pondo termo ao princípio da irreversibilidade das nacionalizações efetuadas após o 25 de Abril de 1974. As revisões que se seguiram, em 1992 e 1997, adaptaram o texto constitucional aos princípios dos Tratados da União Europeia, Maastricht e Amesterdão, consagrando ainda alterações referentes à capacidade eleitoral de cidadãos estrangeiros, à possibilidade de criação de círculos uninominais, ao direito de iniciativa legislativa aos cidadãos, reforçando também os poderes legislativos exclusivos da Assembleia da República.
Em 2001, a 5ª revisão constitucional permitiu a ratificação, por Portugal, da Convenção que cria o Tribunal Penal Internacional, e alterou as regras de extradição.
Em 2004, a 6.ª revisão aprofundou a autonomia político-administrativa das regiões autónomas dos Açores e da Madeira. Aumentando os poderes das respetivas Assembleias Legislativas e eliminando o cargo de “Ministro da República”, que foi substituído por “Representante da República”. Foram também alteradas as normas referentes às relações internacionais e ao direito internacional, relativos à vigência na ordem jurídica interna dos tratados e normas da União Europeia. Foi ainda aprofundado o princípio da limitação dos mandatos dos titulares de cargos políticos executivos, bem como reforçado o princípio da não discriminação, nomeadamente em função da orientação sexual.
Em 2005, a 7.ª revisão constitucional, através do aditamento de um novo artigo, permitiu a realização de referendos sobre a aprovação de tratados que visem a construção e o aprofundamento da União Europeia. Em 2010, iniciaram-se os trabalhos preparatórios relativos à 8.ª revisão constitucional, que foram interrompidos a 19 de junho de 2011 devido à dissolução da Assembleia da República, por decreto do Presidente da República n.º 44-A/2011, de 7 de abril.
Se por um lado as revisões constitucionais realizadas ao longo do tempo refletem o esvaziamento do projecto político-ideológico imprimido na sociedade portuguesa durante o período revolucionário, e a submissão às políticas neoliberais dos tratados da União Europeia. Por outro lado revelam o alargamento dos compromissos internacionais, e a continuidade de princípios já definidos no articulado da Constituição de 1976, de que serve de exemplo o Artigo 7º.
Constituição de 1976:
Artigo 7.º (Relações internacionais)
1. Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do direito dos povos à autodeterminação e à independência, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nas assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da Humanidade.
2. Portugal preconiza a abolição de todas as formas de imperialismo, colonialismo e agressão, o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança colectiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a Paz e a justiça nas relações entre os povos.
3. Portugal reconhece o direito dos povos à insurreição contra todas as formas de opressão, nomeadamente contra o colonialismo e o imperialismo, e manterá laços especiais de amizade e cooperação com os países de língua portuguesa.
VII Revisão Constitucional, 2005:
Artigo 7º (Relações internacionais)
1. Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do respeito dos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da Humanidade.
2. Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a Paz e a justiça nas relações entre os povos.
3. Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão.
4. Portugal mantém laços privilegiados de amizade e cooperação com os países de língua portuguesa.
5. Portugal empenha-se no reforço da identidade europeia e no fortalecimento da ação dos Estados europeus a favor da democracia, da paz, do progresso económico e da justiça nas relações entre os povos.
6. Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático e pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica, social e territorial, de um espaço de liberdade, segurança e justiça e a definição e execução de uma política externa, de segurança e de defesa comuns, convencionar o exercício, em comum, em cooperação ou pelas instituições da União, dos poderes necessários à construção e aprofundamento da união europeia
7. Portugal pode, tendo em vista a realização de uma justiça internacional que promova o respeito pelos direitos da pessoa humana e dos povos, aceitar a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, nas condições de complementaridade e demais termos estabelecidos no Estatuto de Roma.
Na Constituição atualmente em vigor, decorrente da revisão de 2005, importa ainda destacar o Artigo 9.º (Tarefas fundamentais do Estado):
a) Garantir a independência nacional e criar as condições políticas, económicas, sociais e culturais que a promovam;
b) Garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático;
c) Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais;
d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais;
e) Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correto ordenamento do território;
f) Assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa;
g) Promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e d
h) Promover a igualdade entre homens e mulheres.
Independentemente das revisões constitucionais, a Constituição Portuguesa continua a refletir as conquistas alcançadas na Revolução de Abril. E o seu Preâmbulo permanece inalterável como narrativa histórica e inspiradora para as gerações futuras, comprovando que vivemos em Democracia porque fizemos uma Revolução.
Preâmbulo:
“A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista. Libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucionária e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa. A Revolução restituiu aos Portugueses os direitos e liberdades fundamentais. No exercício destes direitos e liberdades, os legítimos representantes do povo reúnem-se para elaborar uma Constituição que corresponde às aspirações do País.
A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno.”[8]
A Revolução de Abril ocorreu num século em que a história parecia caminhar em direção ao socialismo, cuja premissa era a conquista do poder pelas classes trabalhadoras. Nessa brecha temporal os oprimidos tomaram consciência da sua força e capacidade de mudar a sociedade por meio da acção coletiva, e tudo se tornou possível; na concretização de projetos e de projeções utópicas para o futuro, na extraordinária mobilização de sentimentos, paixões e de ideias que se materializaram e consignaram nos articulados da Constituição Portuguesa.
É certo que as revoluções do século XX chegaram ao fim, e que devemos superar o trauma das derrotas do passado refletindo sobre as consequências dessa mudança. Mas a ideia de uma transformação radical da sociedade persiste, mesmo quando os novos movimentos sociais não se encaixam na continuidade histórica dos modelos politico-ideológicos herdados do século XX. E embora não se vislumbre ainda um novo modelo, as utopias estão presentes em movimentos que se reinventam pela criatividade. Na base dessa criatividade está a vontade revolucionária de mudar o mundo, vinda de jovens activistas que desejam acabar com o capitalismo, superar as desigualdades sociais e os problemas ambientais. A questão é como reintroduzir uma ideia de futuro mobilizadora, capaz de integrar a ideia de liberdade, de igualdade e de salvação do planeta num programa comum; o da Revolução do séc. XXI. Como argumenta o historiador italiano Enzo Traverso, as revoluções são fábricas de utopias e um dos meios de transformação das sociedades. E embora sejam continuamente exorcizadas, a história só avança através desses saltos para o futuro.[9]
[1] Versão revista e ampliada da comunicação proferida no Colóquio Democracia de Abril. Defesa e Constituição da República, organizado pela Associação Conquistas da Revolução. Lisboa, Casa do Alentejo, 15 de Novembro de 2023.
[2] Doutorada em Antropologia (especialidade em Movimentos Sociais, Poder e Resistências) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (2011) com pós-doutoramento em Estudos Artísticos (2019). É investigadora no INET-MD e colaboradora do Instituto de História Contemporânea da mesma universidade. É membro do RIARM - Red(e) Ibero-Americana Resistência e(y) Memória, e do GESSA - Grupo de Estudios Sociales Aplicados da Universidad de Extremadura. Participou em diversos projectos multidisciplinares, nacionais e internacionais. Desenvolve investigação em Portugal e Espanha sobre movimentos sociais, usos políticos da memória e práticas da cultura. Tem inúmeros artigos publicados em revistas e obras colectivas, portuguesas e estrangeiras, é autora de seis livros (dois traduzidos em castelhano). Em 2015 recebeu o Prémio de Investigação – Humanidades, da Cidade de Almada.
[3] Em Discursos Políticos. Lisboa: Ministério da Comunicação Social, p. 20.
[4] “Discurso na sessão de Dinamização Cultural do MFA no Sabugo”, em Gama, Augusto Paulo da (org.) Vasco Gonçalves. Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas. Porto, p. 159.
[5] Loff, Manuel (2015), “Estado, democracia e memória: políticas públicas e batalhas pela memória da ditadura portuguesa (1974-2014)”. In M. Loff, F. Piedade e L. C. Soutelo (coord.), Ditaduras e Revolução – Democracia e Políticas da Memória, Coimbra, Almedina, p. 26.
[6] Diário do Governo, II Série, nº 115, Suplemento de 19 de Maio de 1975, pp. 7-9
[7] Ver Carvalho, Miguel (2017), Quando Portugal Ardeu. Histórias e segredos da violência política no pós 25 de Abril. Alfragide: Oficina do livro.
[8] Versão de 2005 em: https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx
[9] Ver Traverso, Enzo (2022), Revolución. Una historia intelectual. Madrid: Akal.
25 de Novembro, o depois
Intervenção de Jorge Sarabando na apresentação do livro de Ribeiro Cardoso
Unicepe, 27 de Novembro de 2023
Sabemos: as revoluções são sempre uma obra colectiva, destinos individuais que se cruzam num dado momento histórico e desencadeiam um processo de transformação. Destacam-se depois alguns protagonistas de quem se desvela um recorte biográfico. A narrativa mais comum centra-se no fluir dos acontecimentos, na ruptura operada, nos actos políticos e seus efeitos, no confronto de interesses sociais, no movimento da história e seu significado. Mas poucas vezes se detém no ser humano concreto, naqueles muitos, como em Portugal, que fizeram de um golpe de Estado uma revolução e transformaram uma ditadura revelha de 48 anos numa democracia desenvolvida, dotada de uma Constituição que consagra direitos sociais e continua em vigor, como carta de unidade de todos os democratas e lei matricial que a todos os portugueses obriga.
Um dos grandes méritos do livro de Ribeiro Cardoso é, justamente, o de trazer até nós o nome e o percurso de vida de capitães de Abril que pouco estiveram na ribalta, na maioria ignorados na historiografia corrente, a quem as instituições vigentes maltrataram, intentaram humilhar e vencer, ou mesmo eliminar, mas sem eles, e o seu contributo, a Revolução não teria sido possível, pois o MFA foi um todo e com todos cumpriu a sua missão e o seu programa.
O golpe de 25 de Novembro evocado ainda hoje como acto salvífico da democracia e da liberdade, tratou sem respeito pela legalidade democrática e por valores humanos essenciais militares do MFA da primeira hora e de todas as horas, entre centenas de oficiais e sargentos, e de praças da Armada, além de mais de uma centena de profissionais da Comunicação Social que foram demitidos das suas funções, e só muitos anos depois viriam a ser reparados das injustiças cometidas, para alguns tarde de mais, tema do anterior livro de Ribeiro Cardoso “O 25 de Novembro e os media estatizados”.
Pelas páginas do livro hoje apresentado passam situações indignas em que militares de Abril foram presos sem acusação ou culpa formada, mantidos incomunicáveis, sujeitos a tratamentos cruéis, como foi o caso de 1ºTenente Miguel Judas, que fora membro do Conselho da Revolução, levado a visitar seu pai no hospital, de noite e algemado. Outros actos abusivos das autoridades militares são descritos com rigor e verdade comprovada. Embora nenhum crime justificasse tais procedimentos, a verdade é que os militares de Abril assim maltratados não foram acusados de qualquer acto ilícito em concreto. Militares do MFA, alguns oficiais superiores, membros do Conselho da Revolução, foram detidos e presos sem o mínimo respeito pelos seus direitos como militares e como cidadãos. Como foi possível?
Falemos, então, do 25 de Novembro.
Antecedido pelo Pronunciamento de Tancos, em Setembro, em que foram afastados Vasco Gonçalves, Primeiro-ministro, Eurico Corvacho, Comandante da Região Militar Norte, e outros membros do Conselho da Revolução, e extintos órgãos democráticos das Unidades militares então existentes, o 25 de Novembro foi um golpe de direita que não chegou tão longe quanto os seus urdidores pretendiam.
Foi meticulosamente preparado, com a contratação atempada de ex-comandos para reforço do Regimento de Comandos, com a transferência em sigilo das barras de ouro do Banco de Portugal para o Porto, com a preparação da deslocação para esta cidade do Governo e da Assembleia Constituinte, com o afastamento cirúrgico de militares de esquerda de funções de chefia e a transferência de forças para a Base de Cortegaça. Dias antes, estava já redigida a resolução, com aprovação garantida, segundo o seu autor, prof. Jorge Miranda, em que a Assembleia Constituinte, reunida a norte, ganharia novos poderes e seria extinto o Conselho da Revolução. Escreveu um dos chefes da rede terrorista da extrema direita que “estavam preparados grupos para executar quem quer que fosse”. A norte ficaria o comando das tropas que marchariam sobre a inventada “Comuna de Lisboa”. O seu objectivo era dividir o País, provocar um banho de sangue e esmagar as forças de esquerda. Não conseguiram. A convergência de democratas e patriotas evitou, no limite, o pior.
A “Comuna de Lisboa” era um cenário ficcionado, como se comprovou, mas instrumental para os objectivos de quem urdiu o golpe. Diziam que o País foi salvo duma ditadura comunista de tipo soviético, e ainda hoje o repetem com certa prosápia, sem que saibam apontar um único facto a fundamentar tão delirante acusação. Quem conhecer a história de países onde foi aplicado o “Método Jacarta” ou foram alvo da “Operação Condor” na América do Sul, com a CIA no comando, encontrará efabulações deste género.
Diria mais tarde o General Vasco Gonçalves: “ O plano não veio a ser concretizado porque a esquerda militar, o Partido Comunista e as forças progressistas não se deixaram envolver na provocação do 25 de Novembro e porque Costa Gomes chamou a si a dependência de todas as unidades militares do País”.
E diria o General Pezarat Correia, que pertenceu ao Grupo dos nove: “A democracia e a liberdade vingaram, não por causa do 25 de Novembro, mas apesar do 25 de Novembro”.
Disse também o General Franco Charais, igualmente do Grupo dos nove: “…,o 25 de Novembro não foi uma tentativa de golpe de Estado da esquerda revolucionária e/ou do PCP. Mas uma simples rebelião de para-quedistas abandonados pelas suas chefias”.
O livro de Ribeiro Cardoso permite reconstituir o percurso profissional dos militares do MFA presos na sequência do 25 de Novembro, restituir o seu bom nome e honradez, soezmente postos em causa.
Passado algum tempo depois de Novembro, diria Vasco Lourenço, então oficial General, comandante da Região Militar de Lisboa, um dos vencedores aparentes do Golpe, numa alocução às tropas, em Setúbal, como se lê na pg.53: “Continuo a ver cair nas prisões camaradas que nos são queridos. A eles nos ligam laços de amizade, camaradagem, de luta em comum que não são fáceis de destruir ou esquecer. Porque nos dividimos nós? Por questões puramente militares? Quem nos divide?”
Sim, quem dividiu o MFA?
Também neste plano se encontram no livro pistas valiosas que ajudam a encontrar respostas, a encontrar saídas nos labirintos de Novembro.
Mas vale a pena uma reflexão.
A aliança Povo-MFA era a expressão política de uma vasta frente social anti-monopolista e a sua acção revelou-se decisiva no avanço do processo revolucionário e na construção da democracia. Quebrar a aliança, dividir o MFA e dividir o movimento popular tornou-se um desígnio estratégico do grande capital ainda movente e do imperialismo norte-americano e suas extensões europeias, visando travar a revolução ou, se necessário e possível, destruí-la. Era imperioso formar uma outra aliança política capaz de travar o curso dos acontecimentos, reduzir a base social de apoio da Revolução, procurando afastar as camadas intermédias e as faixas mais conservadoras da população em relação às classes trabalhadoras. Foi esta a direcção tomada, que só foi possível concretizar por uma aliança espúria entre sectores democráticos e a direita mais extremada.
Outro dos méritos desta obra, ainda incompleta, pois faltam 45 capítulos escritos pelo autor, é incidir sobre um dos períodos menos estudados do processo revolucionário, a sua fase final entre Novembro de 75 e Abril de 76, quando foi promulgada a Constituição, firme compromisso do MFA.
Foi o tempo dos saneamentos à esquerda, de varrer dos quartéis, dos órgãos de comunicação social, por vezes a partir de listas de antemão preparadas, de várias instâncias do Estado, do sector público da economia, então dominante, centenas de pessoas, que podiam ser as mais competentes e qualificadas, mas tinham de ser afastadas, por agirem de acordo com os ideais emancipadores da Revolução de Abril, para serem substituídas por verdadeiros comissários políticos, criaturas mais dóceis e serviçais, algumas chegadas das alfurjas da contra-revolução.
Foi o tempo em que se criaram expedientes, como o conhecido Relatório das Sevícias, um “nada jurídico” como lhe chamou um conjunto de reputados juristas, mas que serviu para lesar a carreira profissional de destacados militares de Abril, que não puderam ser acusados de qualquer envolvimento no 25 de Novembro.
Foi o tempo em que a direita tentou evitar a promulgação da Constituição e submetê-la a um referendo.
Foi o tempo de maior incidência dos atentados bombistas, que provocaram mais vítimas mortais, de que é um trágico exemplo o Padre Max e a jovem estudante Maria de Lurdes, assassinados em Vila Real no dia em que a Constituição foi aprovada, 2 de Abril de 76.
É útil aqui lembrar a acção da rede terrorista da extrema-direita, (ELP, MDLP, Maria da Fonte e outros), com centro logístico e comando na Espanha da ditadura franquista, que tão negativamente influenciou os primeiros passos da democracia nascida em Abril. Entre Maio de 75 e Abril de 77, foram cometidos 566 actos terroristas, entre os quais 310 atentados bombistas e 136 assaltos, a sedes de partidos de esquerda, de sindicatos, a Câmaras Municipais, na simulação de um levantamento popular.
Apesar dos esforços da Polícia Judiciária do Porto, então dirigida pelo Magistrado Dr. Álvaro Guimarães Dias, poucos foram os criminosos presos e condenados.
Na própria noite de 25 de Novembro, no Porto, foram destruídos à bomba os carros de três democratas, o advogado António Taborda, o engenheiro José Júlio Carvalho e o arquitecto Estrela Santos, e à porta do Sindicato dos Vidreiros foi morto a tiro um dos seus dirigentes, o operário António Almeida e Silva, por um bando de arruaceiros fascistas.
Foi o tempo em que uma manifestação pacífica de familias de militares de Abril presos em Custóias, alguns citados no livro hoje presente, foi reprimida a tiro pela guarda de serviço, provocando 4 vítimas mortais, 3 trabalhadores do Porto e um jornalista estrangeiro, e vários feridos graves entre os quais uma criança, sem que ninguém tenha sido responsabilizado.
Foi, então, este tempo de violência, marcada pela impunidade, a que o discurso dominante chama de normalização. Veio depois, com os governos constitucionais e as novas maiorias, a contra-revolução legislativa. Primeiro com novas leis, procurando contornar os limites constitucionais, depois com revisões da Constituição, sobretudo as de 82 e de 89, que em parte a desfiguraram, e com as privatizações permitiram reconstituir o poder dos grupos financeiros que dominaram o País durante a ditadura.
Este livro é uma homenagem a militares do MFA dignos, coerentes, íntegros.
A eles, a todos os militares do MFA, à luta do povo português, devemos o viver numa democracia, que tem uma Constituição, que urge defender e cumprir.
Aqui fica uma sentida palavra de gratidão ao Albino Ribeiro Cardoso, um jornalista que honra a profissão que abraçou, por este valioso contributo para o conhecimento da verdade histórica. Com o seu trabalho paciente, sério, isento, escrupuloso, determinado, podemos conhecer muitos daqueles militares, como pessoas, cidadãos, seres humanos, que tudo arriscaram para que Portugal encontrasse a liberdade e a libertação.
Realiza-se em 7 de dezembro, quinta-feira, às 18 h., na Casa do Alentejo, Rua Portas de Santo Antão 38), a apresentação, pelo jornalista Pedro Tadeu, do nº 6 dos Cadernos de Abril, com os textos da Conferência intitulada “Comunicação Social – liberdade condicionada?”, de que são autores Alfredo Maia, Joana Ascensão, Joana Fillol e Luís Loureiro.
Gostaríamos de contar com a sua presença e participação.
Associação Conquistas da Revolução