Arte, Cultura e Revolução - 14 Dezembro 2018 - Museu do Trabalho Michel Giacometti, Setúbal - Intervenção Modesto Navarro


CULTURA, ARTE, REVOLUÇÃO
SESSÃO DA ASSOCIAÇÃO CONQUISTAS DA REVOLUÇÃO NO MUSEU DO TRABALHO MICHEL GIACOMETTI, EM SETÚBAL

14 de Dezembro de 2018


António Modesto Navarro


Ao falarmos de cultura, de arte e de intervenção no quotidiano, na mudança e transformação do mundo, teremos de equacionar o que é o individual e o colectivo, o relativo e o absoluto, o conhecimento do lugar que ocupamos na sociedade, o exercício e conquista de direitos, a elevação do ser humano a um estádio superior.

A história da humanidade é a história da luta entre ser livre ou escravizar, entre o ser e o ter, entre a procura de luzes, de entendimento e saber e a destruição das possibilidades de conhecimento e afirmação colectiva de cada povo e país.

Já no século XIX e no século XX, em Portugal, e sobretudo durante a 1ª República, os trabalhadores, os operários, os mais desfavorecidos, tiveram de se confrontar com as forças do poder, na conquista das suas organizações próprias, associações, mútuas e cooperativas, jornais e escolas para aprender a ler e a escrever. Ao contrário, os poderes políticos e financeiros, os patrões, e mesmo muitos republicanos e socialistas utópicos, conjugaram-se no aprisionamento das massas operárias e populações a uma situação de explorados e submissos, de ignorância e passividade, ou de excesso de radicalismo tantas vezes individual e negativo, na anarquia que enfraquecia e soçobrava.

Foi na resistência e na afirmação de outros ideais e práticas organizadas e transformadoras, à luz da Revolução de Outubro de 1917 e dos falhanços e enganos dos republicanos, agravados com a entrada desastrosa de Portugal na 1ª Grande Guerra, que espalhou a miséria e a morte por todo o país, entre os portugueses, foi então que outra visão mais ampla e transformadora ganhou forças e se foi impondo na Federação Maximalista e depois na criação da primeira força política que conjugava vontades independentes e em ruptura com o sistema capitalista, o Partido Comunista Português, fundado em 1921.

Esta resistência e organização de novo tipo foi assumida mais tarde por Bento Gonçalves e outros dirigentes, que, na reorganização de 1928/29, imprimiram dinâmicas de intervenção no trabalho, na actividade associativa e sindical, na aprendizagem da cultura e do saber como esteios fundamentais da afirmação colectiva e revolucionária.

O corte com o idealismo esvaziado e enganador da 1ª República, que assentava na propaganda e negava os direitos fundamentais ao trabalho, à liberdade e à mudança, acentuou-se na década de 1930, em que Bento de Jesus Caraça e outros homens e mulheres enfrentaram o fascismo de Salazar com o reforço da intervenção da Universidade Popular Portuguesa; Universidade Popular criada em 1919, que em 1924 afirmava contribuir para a educação geral do povo português, no 1º artigo do seu estatuto revisto nesse ano. Em 1928, Bento Jesus Caraça assumiu a presidência do Conselho Administrativo. Em 16 de Outubro de 1930, na apresentação de novos princípios programáticos, afirmou: «Creio que a classe proletária está destinada a, num futuro mais ou menos próximo, tomar nas suas mãos a direcção dos destinos do mundo, transformando por completo toda a organização social existente. Em todos os lados aparecem indícios seguros precursores desse fenómeno».

Em 22 de Março de 1931, na cidade de Setúbal, na secção da Universidade Popular Portuguesa, em conferência da sessão inaugural do ano lectivo, intitulada “As Universidades Populares e a Cultura”, Bento de Jesus Caraça expôs com maior clareza o que era necessário organizar e desenvolver. O que era necessário assumir para que a caminhada de libertação e de luta pelos direitos fundamentais à cultura e a sua ligação ao trabalho, contra o fascismo nascente, tivesse resultados na formação de forças sociais e políticas que se elevassem e conquistassem apoios para enfrentar o que já se configurava como a doutrina de Salazar e o nazismo em ameaça crescente na Alemanha de Hitler.

Na conferência realizada em Setúbal, a certa altura Bento de Jesus Caraça diz: o aperfeiçoamento constante dos meios de satisfação e desenvolvimento de necessidades, ideias e sentimentos, constitui a cultura que no dizer de Karl Marx «compreende o máximo desenvolvimento das capacidades intelectuais, artísticas e materiais encerradas no homem».
A cultura é assim simultaneamente um meio e um fim.
Encarando agora as sociedades organizadas, tal como actualmente se encontram, pergunta-se – quem deve ser detentor da cultura? a massa geral da humanidade, ou parte dela? Por outras palavras: deve a obra de aperfeiçoamento ser realizada por todos ou apenas por um grupo ou elite que terá por função tomar acessíveis à massa os resultados das conquistas culturais?
Esta questão põe-nos em frente do problema das elites e das castas e a experiência histórica ensina que sempre que um grupo se diferencia da massa geral da humanidade, por qualquer título, estabelecendo um monopólio de qualquer coisa – ideias, força ou dinheiro – fá-lo, não no interesse geral da massa, mas no seu próprio».

E acrescenta: «Deve promover-se a cultura de todos e isso é possível porque ela não é inacessível à massa; o ser humano é indefinidamente aperfeiçoável e a cultura é exactamente a condição indispensável desse aperfeiçoamento progressivo e constante.
Compreendo a cultura assim e não como um conjunto de coisas que estão escritas nos livros e que os estudantes têm que decorar não se sabe bem para quê, quais devem ser os seus objectivos e que formação mental deve procurar conseguir no homem?
Deve em primeiro lugar dar a cada homem a consciência integral da sua própria dignidade.
Eduquemos e cultivemos a consciência humana, acordemo-la quando estiver adormecida, demos a cada um a consciência completa de todos os seus direitos e de todos os seus deveres, da sua dignidade, da sua liberdade. Sejamos homens livres, dentro do mais belo e nobre conceito de liberdade – o reconhecimento a todos do direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, artísticas e materiais.
Assim, cultura e liberdade identificam-se – sem cultura não pode haver liberdade, sem liberdade não pode haver cultura.
Deve ainda a cultura tender ao desenvolvimento do espírito de solidariedade. Não, apenas, solidariedade de cada um com os da sua família, da sua aldeia, ou da sua pátria – solidariedade do homem com todos os outros homens de todo o mundo.
Este internacionalismo não significa de modo nenhum a destruição da pátria, antes pelo contrário, implica a sua consolidação e o seu alargamento a todas as nacionalidades – a formação da pátria humana. O coração do homem é grande e nele cabe bem o amor da sua nacionalidade ao lado do amor de toda a humanidade».

Em “A Cultura Integral do Individuo – Problema Central do nosso Tempo”, conferência proferida em Lisboa, na Universidade Popular Portuguesa, em 25 de Maio de 1933, a convite de uma associação de novos – a União Cultural Mocidade Livre, Bento de Jesus Caraça colocou o essencial e crucial da humanidade, então a caminho de uma segunda guerra que já denunciava e combatia: «No seio das sociedades humanas manifestam-se dois princípios contrários – o individual e o colectivo – de cuja luta resultará um estádio superior dessas mesmas sociedades, em que o primeiro princípio – o individual – chegado a um elevado grau de desenvolvimento, se absorverá no segundo».

Sabemos como a humanidade foi despedaçada e daí surgiram factores políticos contraditórios à escala mundial, de vitórias decisivas da classe operária e de países socialistas, na 2ª grande guerra, e de mudança de poderios coloniais e de queda de países e de regiões do mundo na órbita ascendente, neo-colonial, dos Estados Unidos da América, nomeadamente na Ásia, mas também na Europa, desde logo com o plano Marshall.

No fundo, o que hoje podemos concluir é que houve vitórias e derrotas em percursos de países que tinham ascendido a formas superiores de organização e afirmação colectivas, de povos mais pobres e oprimidos que se tinham elevado a senhores dos seus próprios destinos, enquanto o sistema político do capitalismo também se afirmava noutros destinos e objectivos agressivos e imperiais.

Entre nós, a resistência clandestina do PCP e a afirmação de organizações democráticas tinham assumido, nos campos sociais, culturais e politicamente operativos, essas linhas de trabalho e intervenção desenvolvidas durante os anos 20 e 30 do século passado.

Lembramos aqui a Biblioteca Cosmos, com cerca de 700.000 exemplares de publicações editadas e vendidas, e a influência do neo-realismo, que colocou a classe operária e os mais desfavorecidos em primeiro lugar na literatura e também nas artes plásticas. Não mais o paternalismo republicano da educação idealista e da demagogia, mas sim o caminho da aliança da classe operária com outras classes e camadas, nomeadamente a partir da década de 1940/1950, na afirmação da democracia, da liberdade e da igualdade, no despertar colectivo das massas, na organização associativa, sindical e política, na vitória da luta entre o individual e o colectivo que, ao longo dos anos, veio a afirmar-se na criação de condições para o golpe militar libertador e a revolução de 25 de Abril de 1974 impulsionada pelos trabalhadores e o povo português.

Desde então, a par de outras aprendizagens e áreas de intervenção, as questões da cultura, do saber e das ciências estiveram sempre presentes, a reforçar a consciência e a capacidade colectiva de organizar lutas e enfrentar o fascismo. E, depois do 25 de Abril, denunciar e combater os reformistas e inimigos da democracia, da igualdade e da transformação de um país atrasado, colonizado e ainda colonial, num país livre e independente.

Sabemos o que foi a formação e a criação concreta da Intersindical Nacional em 1970/1971; o que foi a luta clandestina e a ligação profunda e influente ao movimento democrático da CDE, que não traiu os seus objectivos fundamentais; todos na acção com os trabalhadores e populações sacrificadas e desfavorecidas, no trabalho cultural, social, educativo e político nas colectividades, clubes, cooperativas e outras associações populares.

Conhecemos bem a influência dos governos democráticos de Vasco Gonçalves na melhoria das condições de vida no país, na intervenção de militares e civis nas regiões e concelhos onde era imperativo dar condições de afirmação libertadora aos que sofriam ainda o caciquismo e a influência terrorista e assassina do ELP e do MDLP. A comissão dinamizadora da 5ª Divisão das Forças Armadas e estruturas do Poder Central como a Direcção Geral de Acção Cultural levaram à organização de uma rede valiosa e descentralizadora de Centros Culturais e Regionais em todo o país, de companhias de Teatro Independente que os acompanharam e com eles desenvolveram outros mundos de acesso dos trabalhadores e das populações à fruição e à criação de cultura.

As colectividades e outras associações e comissões de moradores, as bandas de música, o teatro amador, a criação do Instituto do Livro e da Leitura, o apoio da Secretaria de Estado da Cultura em todas as áreas, as Bibliotecas Municipais, o ascenso das associações de defesa do património cultural, essa actividade notável das campanhas contra o analfabetismo e pela aquisição do saber, o trabalho de recolha e projecção de raízes culturais populares em que Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça foram exemplos e presenças inolvidáveis, tudo o que foi realizado aí está como herança e projecto sempre pronto a apresentar-se perante nós como força e desígnio fundamentais para o nosso progresso e futuro.

Sabemos dos avanços e derrotas das forças progressistas e revolucionárias, na afirmação do colectivo perante o individualismo e a visão absolutista, globalmente destruidora, do capitalismo monopolista. Essa luta continua, na situação agravada por agressões massivas a países e povos, na Ásia, na América Latina, em África e agora ameaçadora também na Europa, face a uma União Europeia que denunciámos como o desastre previsível em 1986 e antes, e que se desintegra e potencia organizações da extrema-direita que herdam a sua acção destruidora de países e economias.

Hoje, ler, fazer teatro, música, artes plásticas, ter formação científica e transfiguradora, confrontam-se com um perigo enorme que é a mercantilização da cultura e a destruição do saber libertador. O imperialismo económico e financeiro voltou-se determinadamente para essas áreas, investindo o que podem e querem na manipulação de consciências, na compra e submissão de criadores, críticos, comunicação social e todos os meios que anulem conteúdos, os empobreçam e levem à alienação e à perda de ideais e vontade de organizar e caminhar em frente.

Na brutalidade e também na subtileza desse apossamento de editoras, negócios do espectáculo, redes de televisão, jornais, rádios e outras vias e plataformas digitais e avançadas, está o objectivo bem claro de desumanizar a humanidade, de recuo ao passado de ignorância e perda de identidade e coragem de agir, lutar e transformar.

O estádio de hoje é bem mais perigoso e desafiador.

Por isso é necessário continuar a organizar e a agir, a partir de colectividades e outras associações, de estruturas culturais e sociais, do poder local democrático clarividente e interventivo, para que esse objectivo maior de combater o individualismo, o vazio e a pobreza de quem foge à realidade e se deixa alienar esteja mais presente e influente no nosso quotidiano, no dia a dia de operários, trabalhadores e populações. Precisamos de nos reforçar nessa acção cultural e cívica que já se inclui plenamente na luta sindical e política pelos direitos laborais e sociais, pela libertação decisiva face ao imperialismo global que se torna cada vez mais a ameaça evidente de uma nova guerra que seria monstruosamente demolidora dos povos e da humanidade.

Por isso aqui estamos e estaremos, na cultura de aprendizagens maiores que nos integrem decisivamente na vida colectiva e libertadora.