Intervenção de José Nunes Maia
Professor Aposentado do ISCTE;
Ex-Membro da Comissão de Fiscalização da
Siderurgia Nacional, E. P., em representação dos trabalhadores;
Gestor eleito por larga maioria dos trabalhadores da Siderurgia
Nacional, E.P. para integrar o respectivo Conselho de Gerência. Não tomou
posse, alegadamente porque, desde o Governo de Maria de Lurdes Pintassilgo, a
lei enquadradora não foi regulamentada; Ex-Membro do Comité Consultivo da CECA, em
representação da CGTP.
Reflexões sobre a Gestão das Empresas Nacionalizadas em 1975
Amigos,
senhoras e senhores
Pode
parecer um acaso que, em idade normal, eu tivesse cursado a licenciatura em
engenharia no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, e, quase imediatamente, exercido
a profissão de engenheiro durante 19 anos na antiga Siderurgia Nacional, onde
me empreguei em 1972, quando a Empresa era controlada pelo Grupo Champalimaud,
mas cabe-me confessar que, em meu cálculo pessoal, sempre admitira que essa
minha opção pessoal, de me empregar na Siderurgia Nacional – com efeito, como
jovem engenheiro acabado de sair do “Técnico”, eu fora convidado a integrar o
então Grupo CUF –, talvez me viesse a compensar, em termos de enriquecimento
pessoal, pela experiência profissional numa Empresa que, a meus olhos, prometia
desempenhar um papel relevante no desenvolvimento industrial português,
afastada que fosse a teia de interesses estabelecida em torno do Grupo
Champalimaud, teia de interesses que, em muitos aspectos, impedia a Empresa de
exercer aquele papel, obviamente por até então estar sobretudo ao serviço dos
interesses, e dos caprichos, daquele Grupo.
Devo, pois,
reconhecer que aquela aposta pessoal veio a ser razoavelmente ganha pela
chegada do 25 de Abril, e, em particular, pela radicalização do processo
revolucionário com a chegada das nacionalizações dos então chamados sectores
básicos da economia, na sequência do 11 de Março de 1975.
A
nacionalização da Siderurgia Nacional veio, está claro, a constituir-se como um
elemento importante na consolidação do poder político democrático, e então
revolucionário, ou não tivesse António Champalimaud jogado habilmente com a
arma do vencimento mínimo logo em Maio de 1974, “decretando” então aumentos bem
superiores aos reclamados pelos sindicatos, criando por essa demagógica via um
sério problema ao Governo Provisório, como depois mo confirmou, aliás, o
próprio General Vasco Gonçalves. E António Champalimaud não se inibiu de jogar
aquela arma apesar de, à data do 25 de Abril, já se arrastar por perto de 30
meses o período de “negociação colectiva” que, num ápice, teve assim o seu
epílogo após o célebre “1º de Maio” de 1974. Esvaziando, será oportuno
sublinhá-lo, as manobras dilatórias conduzidas, no quadro da negociação
colectiva, durante mais de 2 anos pela Administração da Siderurgia Nacional,
por si controlada, mas para deitar mão, já se vê, a manobras noutro tabuleiro,
sob o óbvio pretexto da mudança política que então se vivia em Portugal.
Invoco este
pormenor por ser público, e por ser uma eloquente prova das manobras que, em
particular quando está acesa a luta de classes, os detentores dum monopólio, ou
dum oligopólio, podem desenvolver. Digamo-lo claramente: do ponto de vista da
luta de classes, as formações monopolísticas são uma arma frequentemente
poderosa a favor de quem as detém, pelo que, em termos de política económica,
bem podemos proclamar que, se é certo que um monopólio só deve ser tolerado
quando estamos perante a inevitabilidade da sua emergência por razões
“naturais” como a economia de escala, a sua existência jamais é tolerável em
mãos privadas. Por mais que nos venham com a conversa das entidades
supostamente reguladoras da sua actividade, como, à saciedade, se vem
verificando recentemente entre nós desde logo na questão dos preços nas áreas,
hoje todas de importância capital, dos combustíveis, da electricidade ou das
comunicações, após a reprivatização destes sectores.
A
nacionalização da Siderurgia Nacional beneficia aqui de destaque pela mera
circunstância da história pessoal deste orador, mas importa reconhecer que ela
não é mais do que uma ilustração típica dos problemas com que se defrontou a
implantação da democracia, que, após o golpe do 11 de Março de 1975, não pôde
dispensar o recurso à nacionalização de várias indústrias então consideradas
básicas.
Percebe-se
assim a lógica de se ter vindo a incluir as nacionalizações das principais
empresas industriais na bandeira das Conquistas de Abril.
Mas importa
ter em conta que, em termos de gestão destas importantes empresas na esfera
nacional, e no quadro do necessário desenvolvimento económico almejado com o 25
de Abril, outras questões de grande alcance se impuseram. Destaco, em
particular, a questão da adequação do aparelho técnico dessas empresas às
necessidades do adensamento do tecido económico português, desde logo na
vertente industrial.
Tornou-se
então evidente para muitas mais pessoas que, também nesse aspecto, severas eram
as consequências da herança da indústria monopolizada em mãos privadas,
monopolização que, para total garantia dos interesses instalados, até tinha
contado com a oferta, por Salazar, do chamado regime de condicionamento
industrial. Note-se que este regime era, à época, tão anacrónico, que mesmo
adeptos da via capitalista se distanciavam dele, tal o convite implícito que
dele decorria a um considerável marasmo no desenvolvimento técnico industrial
que os monopolistas privados impuseram ao país. Não estou, esclareça-se, a
sugerir que nada de interesse existia em Portugal na esfera industrial, ou que
a indústria existente à data do 25 de Abril lembrava mais a indústria existente
nos nossos vizinhos europeus no início do século XX, estou apenas a sublinhar
que, no geral, grande era o atraso do nosso ambiente industrial em relação ao
desses países. E este atraso era tão pesado que não é exagero afirmar-se, sem
pretender afastar os erros da política industrial anti-Abril seguida nas
últimas décadas, que nele se podem encontar as profundas raízes da considerável
fragilidade da nossa actual indústria, fragilidade que nem a ocorrência de 2
PEDIP, com apoio dito comunitário europeu, resolveu capazmente, longe disso,
pelo que é de reconsiderar, à luz da história, que a necessária ultrapassagem
deste problema de atraso vai ter de passar pela nacionalização dos sectores que
a actual estrutura da indústria contenha e que possam desempenhar papel básico
na dinamização da indústria em Portugal. Uma coisa é certa, e até alguns
liberais, ou, na prática, convertidos ao neoliberalismo, vão reconhecendo:
Portugal carece de re-industrialização, sob pena de, também por essa lacuna,
não se vislumbrar saída duradoura para a crise em que a política anti-Abril de
há muito vem mergulhando o país.
Quem se
manteve mais longe da análise destes problemas poderá estranhar estas minhas
palavras, por idealizar que a questão das nacionalizações só interessaria à
esfera política, não vendo nas nacionalizações um caminho afinal indispensável
à solução de muitas e sérias questões técnicas das empresas nacionalizadas.
Pois, é caso para reconhecer que muito eficaz foi a propaganda anti-Abril:
admito que grande parte dos portugueses se tenha deixado convencer de que os
grupos monopolistas não cometiam erros técnicos e que, quanto a prejuízos,
essas empresas só neles incorriam enquanto empresas nacionalizadas.
Deixem-me
por isso, uma vez mais, recorrer aqui ao exemplo da Siderurgia Nacional para
ilustrar 2 problemas técnicos da maior gravidade com que a nacionalização teve
de se defrontar: a localização da fábrica do Seixal, a escala do alto-forno
instalado.
A verdade é
que a localização da fábrica no Seixal só satisfazia um bom critério de
localização, a saber, o de o Seixal integrar a Grande Lisboa, a região maior
consumidora de aço no país, pelo que a distribuição dos produtos siderúrgicos
ficava deste ponto de vista facilitada. Mas já quanto ao meio de transporte, as
soluções ao dispor da Empresa estavam, na prática, confinadas à via do camião,
visto que, então, a fábrica não tinha ligação à rede ferroviária nacional.
Dir-se-á que lhe cabia explorar a via marítima, mas a verdade é que esta via só
podia ser usada com sérias limitações: os mais velhos talvez se lembrem da
trasfega de minério e de carvão que se fazia em pleno estuário do Tejo, de
barcos graneleiros de 30 milhares de toneladas para pequenas barcaças com
capacidade nunca superior a 2 mil toneladas, barcaças que transportavam
finalmente aquelas matérias-primas até ao muito modesto cais da fábrica do
Seixal, no estuário do Coina, num processo caro e poluidor. Ou seja, a fábrica
do Seixal estava geograficamente próxima do mar, podendo, pensaria qualquer
especialista siderúrgico, retirar partido dessa localização como aconteceu a
muitas empresas siderúrgicas que, por tal motivo, eram colectivamente
consideradas “costeiras”, o que, obviamente, lhes permitia, e permite, receber
matérias-primas e expedir produtos acabados em barcos grandes e mais
económicos. Mas o problema é que a fábrica do Seixal não era “costeira”, porque
os barcos grandes não chegavam lá. Como também não chegavam ao Barreiro,
lembremo-nos, limitando igualmente a exploração do complexo da Quimigal. Enfim,
tivesse a decisão de localização da fábrica do Seixal sido bem estudada pelo
Grupo Champalimaud e facilmente se teria encontrado o porto de Setúbal como a
decisão óptima para a localização da fábrica siderúrgica integrada. Eis por
que, chegada a nacionalização, não pôde a Siderurgia Nacional cumprir tão
exemplarmente quanto conviria a uma economia ao serviço do povo fornecer aço
não só de qualidade como a preço mais módico.
Quanto à
escala do alto-forno, parâmetro de enorme importância no plano de custos de
produção fabril, bastará colocar a questão: quantos altos-fornos com capacidade
anual inferior a meio milhão de toneladas (como era o caso do alto-forno do
Seixal) existiam na Europa na circunstância de serem aparelhos únicos das
respectivas empresas? Só já depois da nacionalização foi esta questão encarada,
através da aquisição de 1 alto-forno de 1 milhão de toneladas. Mas foi sol de
pouca dura, o então primeiro-ministro Cavaco Silva, em mais uma das suas
fulgurantes decisões sob a dócil submissão aos interesses estrangeiros, tratou
de mandar vendê-lo, não permitindo a sua instalação em Portugal, ferindo, no
enquadramento comunitário, finalmente de morte a continuidade da siderurgia
integrada
em Portugal. E remetendo-nos, é a amarga verdade, para a situação de país que
actualmente dispõe de uma siderurgia afinal bem típica dos primeiros passos de
insdustrialização dos países subdesenvolvidos, que, no essencial, reduz a sua
actividade à fusão de sucatas ferrosas com a produção de varão para betão.
Isto é, a
Siderurgia Nacional nacionalizada herdou importantes problemas técnicos, e
económicos, que apenas após a
nacionalização começaram a ser equacionados. Mas na voragem anti-Abril
subsequente parte desses equacionamentos sequer vieram a ter expressão prática.
A curteza de vistas foi, aliás, tamanha, que, decidida a reprivatização, muito
espantado ficou o Governo, então de Cavaco Silva, com a ausência de candidatos
à reprivatização. Nem Champalimaud, então já regressado às lides
intrafronteiras, lhe pegou. Porque, obviamente, a cartilha neoliberal já estava
então, e em força, em marcha na Siderurgia Nacional, com a inevitável
degradação de muitos índices organizativos, técnicos e económicos. Cumpriu-se a
seguir o caminho lógico da integração europeia, em clara antecipação do que,
depois e nos nossos dias se vê: em Portugal reduza-se a siderurgia à mínima
expressão, em favor das potências europeias, com destaque para a Alemanha, que
precisava de assegurar mercado para as suas já muito produtivas siderurgias,
que, aliás, continua a modernizar.
Amigos
Muitas e
complexas questões se colocaram, portanto, à gestão das empresas
nacionalizadas, mas, na minha perspectiva, essas dificuldades voltarão amanhã a
ocorrer, quando encontrarmos colectivamente uma via capaz de contrariar as
barreiras que se opõem ao nosso desenvolvimento económico, social, cultural. Um
problema adicional é que essa dificuldades não vão repetir-se exactamente na
espécie, na sequência, no ritmo.
Não quero
empolar dificuldades, mas, em particular na minha qualidade de estudioso da
gestão empresarial, gostava de deixar aqui a opinião de que, sem novo clima
político, nada se conseguirá com efeito duradouro. Sequer recorrendo à ilusória
segurança dada por uma boa Constituição, e por boas Leis-quadro, por exemplo
relativas a novas nacionalizações. Digo ilusória porque, se atentarmos bem nas
leis das nacionalizações e dos estatutos das empresas públicas que apareceram
em 1975, concluiremos que, se não eram perfeitas, não foram os seus defeitos
que impediram o almejado êxito perseguido pelas nacionalizações. Pelo
contrário: posso testemunhar que, por exemplo no quadro da Siderurgia Nacional,
era tão ampla e clara a leitura de obrigações mínimas dos gestores da
Siderurgia Nacional, E. P., que, a partir de certa altura, se lhes ouviu: nós
temos aqui obrigações estritas a cumprir, mas, afinal, só há um Partido, que
por acaso não está no Governo, que defende as nacionalizações. Bem,
acrescente-se, além do Partido, havia o empenho da maioria dos trabalhadores da
Siderurgia Nacional e das suas organizações mais representativas, que bem podem
orgulhar-se do que conseguiram realizar em termos de esclarecimento e
mobilização.
Termino: as
nacionalizações hão-de servir antes de mais como uma resposta e um instrumento
políticos, mas o seu êxito vai depender também de uma delicada gestão nas
diversas vertentes técnicas e económicas, doravante porventura até mais
exigentes como, por exemplo, na dimensão ambiental, obviamente enquadradas por
leis capazes, mas fraco alcance se conseguirá nessa caminhada se não houver
empenho no trabalho dos respectivos trabalhadores e gestores. Sem esquecer que
não há consolidações imutáveis ou irreversíveis em gestão, aqui como na
política, pelo contrário: estamos no domínio do que apenas existe quando é
construído e mantido, visando a criação de uma ordem que, por ser humanista, é
complexa, é exigente, em busca não redutível a uma mera orientação como a de
que o capitalismo se serve, a mera busca de lucro financeiro.
Não, o
futuro que precisamos de construir é mais complexo do que o capitalismo
pressupõe, mas é aquele que o nosso humanismo reclama.
Seixal,
28 de Abril de 2012