( «Nunca aceitaria qualquer tirania…») [Urbano Tavares Rodrigues]
(«Uso a palavra amor no sentido mais lato, não só sexual. A grande lição para o mundo futuro é uma grande dose de amor, de compreensão dos outros. Não sei se nota isso nos meus livros.») [Urbano Tavares Rodrigues]
(«A poesia de alta qualidade, mesmo quando não parece directamente ligada ao processo revolucionário, é sempre progressista. Porque a beleza em si é uma forma de progresso, de aperfeiçoamento do ser humano» [Urbano Tavares Rodrigues]
I-A tua escrita foi feita coma tinta da luta e do amor.
Mais um Amigo que nos deixa neste mês de Agosto de 2013.Urbano Tavares Rodrigues.
Conheci-te há mais de quarenta anos (Abril de 1973) no III Congresso da Oposição Democrática em Aveiro, quando eras membro da sua Comissão Nacional. Apresentaram-me como um capitão revoltado e trocámos documentos. Foste dos que conheceste o meu manifesto/requerimento contra a situação e o teu sorriso luminoso e esperançoso ouviu palavras minhas premonitórias sobre o fim do regime por parte dos militares. Já tínhamos começado a mexer.
Sempre que nos encontrávamos falavas-me de ABRIL…e os teus olhos brilhavam. No teu olhar estava tudo o que o nosso Abril merece: encantamento, fraternidade, amizade, solidariedade, liberdade, saudade…e tudo o mais que sente a cabeça e o coração!
Os anos foram passando. Fomo-nos encontrando esporadicamente. Quanto mais debilitado te víamos mais luminoso e penetrante era o teu sorriso. A tua partida não foi inesperada. Foi desgosto grande. Os quase noventa anos não perdoam; nem aos génios perdoam!
Dizem teres sido um escritor e sedutor indignado. Sim. Mas foste sobretudo um combatente serenamente apaixonado. A tua escrita foi feita coma tinta da luta e do amor. Foste um nobre guerreiro, militante de espada, por um melhor mundo, cuja lâmina tinha a dimensão plana do teu Alentejo e bem representava também a cruz das gentes sofridas, na elevação da sua dignidade, tão profusamente por ti defendida!
II- Nunca aceitarias qualquer tirania .
No poema “Destino” do teu livro “Horas de Vidro” dizes bem quem és:
«Trago na fonte/e estrela do fogo/da minha revolta/Nunca aceitaria qualquer tirania/nem a do dinheiro/nem a do mais justo ditador/nem a própria vida eu aceito.../tal como ela é/com todas as promessas/do amor e da juventude/e a parda doença/de envelhecer/a morte em cada dia/antecipada. Na mais lebrega alfurja/ou na cama de folhas macias/da floresta/da onde a chuva te adormeceu/há sempre um idamente de sol/cujos raios te penetram de/ventura/ao sonhares a palavra/liberdade.»
III- Biografia resumida.
“Filho do escritor Urbano Rodrigues, nasceu em Lisboa e passou a infância em Moura. Criado numa família de grandes proprietários agrícolas, recebeu as influências das gentes do campo, o que marcou indelevelmente. Frequentou a Faculdade de Letras de Lisboa, onde se licenciou em Filologia Românica. Impedido de leccionar em Portugal, foi leitor de português nas universidades de Montpellier, Aix e Paris, entre os anos de 1949 e 1955. Depois do 25 de Abril de 1974 regressou a Portugal. Em 1984 doutorou-se em Literatura, com uma tese sobre a obra de Manuel Teixeira Gomes. Em 1993 jubila-se como professor catedrático da Faculdade de Letras. Foi igualmente professor na Universidade Autónoma de Lisboa Luís de Camões. Foi membro efectivo da Academia de Ciências de Lisboa e membro correspondente da Academia Brasileira de Letras.”(Wilkipédia)
“Escreveu em diversas revistas e jornais, como o Bulletin des Études Portugaises, a Colóquio-Letras, o Jornal de Letras, Vértice, Nouvel Observateur, entre outros. Foi director da revista Europa e crítico de teatro d' O Século e do Diário de Lisboa. Enquanto repórter percorreu grande parte do mundo, tendo reunido os seus relatos de viagem nos volumes Santiago de Compostela (1949), Jornadas no Oriente (1956) e Jornadas na Europa (1958)(….) (…) Recebeu variados galardões literários, como o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa, com a obra Uma Pedrada no Charco — é de salientar que o seu pai, Urbano Rodrigues, já tinha vencido este prémio na edição do ano de 1948, com a obra O Castigo de D. João —, o Prémio da Associação Internacional de Críticos Literários, o Prémio da Imprensa Cultural, o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores e o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco.””(Wilkipédia)
IV- O amor, para ti, como uma necessidade absoluta do mundo.
Numa entrevista ao jornal Público/Ípsilon, o ano passado, voltámos a ouvir a tua inteligência falar de amor:
«Não consigo escrever qualquer coisa que seja completamente nova, mas consigo escrever de uma maneira nova e cada vez mais olho o amor como uma necessidade absoluta do mundo»(…)«Uso a palavra amor no sentido mais lato, não só sexual. A grande lição para o mundo futuro é uma grande dose de amor, de compreensão dos outros. (…).»
Foste um dos autores portugueses mais prolíficos da segundam metade do séc. XX. Como já assinalámos recebeste vários galardões literários, Mas ao Ípsilon, na mesma entrevista, confessavas-te desiludido e revoltado por nunca ter recebido o Prémio Camões, e porquê?
«Ainda não tive o prémio Camões porque soube recentemente que há membros do júri que dizem: “esse comunista não terá o Prémio Camões"».
E bem o merecias, todos sabemos. Nunca deixaste de ser corajoso e frontal, senhor das tuas convicções e daí a tua mais que justa revolta perante o sistema cego e preconceituoso!
V- Entre o realismo e o fantástico e a pressão da realidade envolvente.
Casado com a também brilhante escritora Maria Judite de Carvalho, que morreu em 1998, e pai de Isabel Fraga, romancista e tradutora, deixas ainda um filho com sete anos “o teu menino António” fruto de um segundo matrimónio a rondar os oitenta anos.
Autor de uma vasta obra escrita, no romance, novela, conto, teatro, poesia, crónica, viagens, ensaio e jornalismo. Nela estão presentes os valores humanos que sempre acarinhaste: -liberdade, solidariedade e justiça social.
Afirmaste, em tempos, que a tua obra foi influenciada pelo existencialismo francês da década de 1950, ocasião em que integras uma geração neorrealista preocupada em analisar o marxismo sob a óptica dos acontecimentos históricos fracturante na época. Mais tarde, na sequência da tua detenção no forte de Caxias, durante a ditadura surges como autor de resistência, a que se seguiu um novo período de esperança no pós-25 de Abril. Mas numa entrevista feita a José Manuel Mendes, em 1989,tu próprio te defines como dividido «entre o realismo e o fantástico», esclarecendo contudo que nunca tiveras uma escola mas sim «a pressão da realidade envolvente». Deixaste uma obra literária e ensaística muito vasta e traduzida em inúmeros idiomas, do francês e do espanhol ao russo e ao chinês.
Entre os teus livros, muitos reeditados, podemos destacar (no género romance, novela e conto):“As Aves da Madrugada”(1957)(2012),“A Noite Roxa”(1956)(1982), ”Uma Pedrada no Charco”(1957)(1998) ,“Bastardos do Sol”(1959)(1994), “Os Insubmissos” (1961) (2003), “Imitação da Felicidade” (1966) (1988), “As Pombas são Vermelhas”(1977)(1985),“Fuga Imóvel”(1982)(19929, ”Violeta e a Noite”(1991), “O Supremo Interdito”(2000), “Nunca Diremos Quem Sois”(2002),), “A Estação Dourada”(2003), ”Os Cadernos Secretos de Pior do Crato”(2007) e(último editado) a “Imensa Boca dessa Angústia e Outras Histórias”(2013). A tua última obra é “Nenhuma Vida” inédito entregue à editora, em Julho passado, para ser publicado brevemente.
VI-Exigência e coerência. Verticalidade e paixão. Insubmissão.
Há 57 anos, precisamente em Agosto de 1956,foste cobrir o conflito do Suez para o Diário de Notícias. Nunca ficaste satisfeito com as crónicas publicadas sob a alçada férrea da censura. Reunidas estas crónicas em 1999,em nota prévia, referiste essa insatisfação pelas condicionantes impostas pelo fascismo mas expressaste, mesmo assim, “gostaria que esses capítulos viessem a ser conhecidos pelos povos árabes ”.Mais um facto a revelar a fibra de um homem que iria fazer 90 anos em Dezembro e que toda a sua vida adulta teve como objectivo acabar com a luta da exploração do homem.
Tendo passado a tua infância em Moura, no nosso Alentejo, onde coabitava a fome com as ricas famílias , como a tua, possuidora de algumas terras, nunca na tua obra e nas tuas acções olvidaste o que ali tinhas vivido e registado nesses anos. Não pode deixar de salientar-se o que tu próprio contas, a propósito da herança das propriedades familiares, numa entrevista recente, já em Setembro de 2012,a um outro jornal
«Éramos três. O meu irmão Jorge não tinha as mesmas ideias - era um homem que se interessava fundamentalmente pelo dinheiro. Para podermos dar ao Jorge a parte dele vendemos aquilo a um primo nosso, grande agrário. Comprou se lhe garantíssemos que não lhe ocupavam as terras. Garantimos. A nossa parte, minha e do Miguel, ficou para o sindicato dos trabalhadores agrícolas do distrito de Beja. Pedi licença para tirar da minha parte uma pequena parte para ajudar a minha filha a comprar uma casa. Acharam bem. E ela comprou. Ela também está muito perto das ideias comunistas, embora não seja militante.»
Foste uma espécie de socialista cristão, como disseste, mas também é nessa mesma entrevista que nos confessas:
«A minha primeira relação com o Alentejo é eminentemente poética. Começo a sentir a natureza apaixonadamente, como qualquer coisa de mágico. Essa relação profunda a certa altura transforma-se porque me dou conta das injustiças sociais. Das desigualdades. Enveredo por um caminho que é uma espécie de socialismo cristão….Deixo de ser …(crente)… por causa da confissão. Se me comprometo, se juro, não cometer os mesmos pecados, [sou absolvido]. E tenho de rezar umas tantas orações. Eu sei de antemão que vou cometer esses pecados... Portanto, aquilo parece-me uma farsa. E repudio completamente o catolicismo.» (…)«As primeiras ideias marxistas vêm-me do contacto com o meu primo Fernando Medina, casado com a Maria Eugénia Cunhal, que era comunista. Dá-me a ler pela primeira vez textos do Marx. Tinha talvez 13, 14 anos.»
Ainda antes de ingressares no Partido Comunista Português, o que aconteceria em 1969,estiveste em Cuba em 1962, participando num encontro de escritores solidários com a revolução cubana e no ano seguinte, em Florença presides, enquanto membro, à delegação portuguesa das Juntas de Acção Patriótica no Congresso em Defesa da Liberdade da Cultura, realizado pela Comunidade Europeia de Escritores. No mesmo ano és preso acusado de pertencer ao PCP e às Juntas de Acção Patriótica.
Foi a primeira de três vezes que és preso e sujeito a brutais torturas pela PIDE. Há quem não te reconhecesse na magreza com que saíste de Peniche, mantendo o teu olhar doce e bondoso!
Em Cuba travas conhecimento com Fidel e Che Guevara e é sobretudo com este que crias laços profundos, na luta e na amizade. «Em 1961 vou a Cuba no momento do ataque [Baía dos Porcos] e conheço pessoalmente e travo relações de amizade com alguém que ia marcar toda a minha vida: o Che Guevara. Tivemos conversas muito interessantes, algumas, justamente, sobre poesia. (…)"A poesia de alta qualidade, mesmo quando não parece directamente ligada ao processo revolucionário, é sempre progressista. Porque a beleza em si é uma forma de progresso, de aperfeiçoamento do ser humano", disse-lhe. O Guevara deu-me esta resposta de que nunca me esqueci: "Talvez tu tenhas razão. Mas se puderem dar um jeitinho para o nosso lado, agradeço!". Isto era o Che.» (…) «Che tinha uma natureza romântica e revolucionária. E adorava as mulheres. E as mulheres adoravam o Che. Teve uma ligação no México com uma mulher mais velha, que tinha uma grande cultura marxista, e que foi quem fez dele um marxista.» (…) «Acreditava verdadeiramente no futuro do socialismo. Condenou os abusos da União Soviética quando esteve em Argel, e depois mergulhou naquela absurda guerrilha da Bolívia um pouco por causa disso. Como protesto contra o socialismo degradado. Andei por lá, ao lado do Che».
Tendo-te sido perguntado se te consideravas um D.Juan, respondes: «Nunca fui um Don Juan. Isso nunca fui, não.O Don Juan é um sedutor com o desejo do império e da sedução. Eu não fui nada disso. Era um menino bonito, tímido, que inspirava ternura nas mulheres. Essa ternura é que arrastava o acto sexual. Se quiser, [era] um Don Juan seduzido, mas não era um sedutor. O sedutor, como o Miguel de Mañara da lenda espanhola, é aquele que quer mesmo seduzir.»
Em "Solidões em Brasa", como noutros escritos, evocas "a longa resistência dos comunistas e outros antifascistas". Falas do poder operário, da "participação dos trabalhadores na gestão desses casarões, em breve nacionalizados, de onde eram expulsos, se é que não tinham já fugido, capitalistas e serventuários da ditadura". Na mesma entrevista que temos vindo a citar foi-te perguntado:-A palavra "capitalista" tinha para si peçonha? «Tinha! [riso] Ainda tem» respondes sem hesitar.E ainda perante nova pergunta:- Falas do "veneno da insubmissão". ---Insubmissão continua a ser uma palavra central em si? O primeiro dos seus livros a ser notado foi "Os Insubmissos", respondes: «Sim, continua. O Nuno Júdice fez uma leitura muito fina e profunda do livro. Diz que é um livro cheio de novidade, até na maneira de contar.»
VII- O papel das crianças é trazer a esperança e o futuro.
Tiveste um filho aos 83 anos e falaste assim do teu menino. «Ah, o meu António. Menino com talento para a pintura, o futebol, a natação, tanta coisa. Valentíssimo. Sai a mim. Não é provocador, mas se o empurram, vai soco que ferve. Sai ao pai, eu era valente ao soco! Fartei-me de andar à pancada. Porque andei no liceu Camões no tempo da [Segunda] Guerra. Havia os alianófilos, como eu, e os germanófilos. Entre nós havia cenas de pancadaria constantes.» (…)« Mas voltando ao meu filho.Tenho um texto escrito já há um tempo que se chama "Meu António Querido, quando fizeres dez anos vais ler estas palavras. Ocupa uma folha e explica quem eu fui, como eu gostava que ele me visse e como eu gostava que ele fosse. Para já está tudo bem, excepto que eu sou benfiquista e ele não. Foi um acontecimento extraordinário ter tido o António. Se o papel das crianças é trazer a esperança e o futuro? Direi que sim.»
VIII-O neofascismo na governação actual.
Sobre o actual momento que o teu país atravessa consideravas, e bem, que o governo de Passos é neofascista. «Porque está a limitar cada vez mais o direito à greve (e encontra formas de limitação). O Passos Coelho é um indivíduo pouco escrupuloso. Não correu ainda [Set.2012] com o Relvas porque estão ligados, os dois, em negócios sujos. Insultei o Sócrates quando ele esteve no Governo. Chamei-lhe vários nomes que apareceram na Internet. Trafulha, aldrabão, bandido, etc. Hoje acho que o Sócrates, comparado com o Passos Coelho, é uma pessoa com qualidades (…). »
IX-Crítico. Incómodo. Fidelidade ideológica.
Quer a bandeira do partido comunista sobre a urna? Foi-te perguntado o ano passado. «Quero, quero, quero. Absolutamente» respondeste, depois de teres afirmado: « (…) hei-de ser comunista até ao último instante!».O entrevistador insiste. Que significa esse ritual? «É uma ideia de felicidade que só pode ser assegurada pela pureza desse instante. (Deixe-me ver se consigo explicar isto melhor...) É o momento em que tudo se cristaliza, tudo o que há de belo se reúne. É o fim do fim”.
X- Obra e exemplo imortais. Inicio ou retoma de aprendizagem.
Não amigo Urbano. Não é o fim do fim. É o início ou a retoma para todos aprendermos, ainda mais, com a tua obra e o teu exemplo. Obra e exemplo imortais para os seres humanos que verdadeiramente amarem os princípios e os valores que deram corpo e alma à tua prosa, à tua poesia, à tua luta…
XI-A Lua no chão. Um borrão lindíssimo.
Por isso nesta nossa singela homenagem de amigo e ousando repetir o que disseste sobre o papel das crianças que é o de” trazer a esperança ao mundo” achei que me perdoarás citar o escrito da tua filha Isabel, no que é doce e terno , características tão tuas, este testemunho de amor e saudade por um pai especial e porque, como tu disseste, “é lindíssimo”.
I.F.« Lembro-me de um dia, por volta dos meus 7 ou 8 anos, ter recebido como presente uma caixa de guaches de todas as cores.
O desenho nunca foi o meu forte, mas julgo que nessa altura ainda não tinha tido oportunidade de chegar a essa triste conclusão e haviam-me criado condições para montar o meu pequeno atelier no quarto da costura da enorme casa dos meus avós.
Não sei que outras obras de arte teria feito antes, mas quando entraste na sala, nesse dia, estava eu a terminar o vestido radioso de uma menina que habitava uma paisagem campestre, cheia de árvores e flores. Era minha intenção acrescentar inúmeras bolinhas brancas à sua saia rodada, mas mergulhara desordenadamente o pincel na tinta e um enorme borrão tinha caído no chão do desenho, manchando também o meu momento. Tu aproximavas-te da secretária. Era tão raro visitares-me enquanto brincava!
Rodei as cerdas do pincel em círculos rápidos e meticulosos, de aparente concentração.— Que é isso — perguntaste. — Que estás a pintar?— Uma menina — disse, sem desviar os olhos do trabalho. — Uma menina no campo.—Ah, muito bem — ias concluir já de saída, quando um meio sorriso um pouco condescendente te reteve mais um pouco.— E isto? — quiseste saber, apontando para o borrão de tinta branca que eu não parava de aumentar.— Isto é a lua — respondi.
— A lua no chão? — estranhaste.— Sim, a lua no chão.
O teu rosto tornou-se então grave. Sério. — A lua no chão — repetiste.— Mas isso é lindíssimo! — e saíste triunfante, a folha de papel almaço entre as mãos, declarando naquele teu tom de voz quase em contralto que termina num murmúrio de verdadeiro êxtase:— Isto revela um imenso sentido poético! Dias depois o meu «quadro» surgia emoldurado. Andou por essa casa durante anos e anos. «A tua lua no chão» como sempre lhe chamaste. Ainda hoje penso muitas vezes se as coisas belas o têm de ser obrigatoriamente à partida — enquanto ideia, elemento estético — ou se podem construir-se no material dos erros, dos borrões, rodando as cerdas dos afectos em longos círculos de tinta branca. Criando luas. Julgo que sim. Mas julgo também que, para que tal aconteça, é necessário que alguém, alguma vez, tenha sido capaz de olhar para o nosso trágico engano, para a nossa pinta derramada do vestido, emoldurá-lo, dar-lhe um pedacinho de parede e murmurar nesse exagero alquímico dos afectos “Isto é lindíssimo!”
Eu tive essa sorte.» ( Isabel Fraga/tua filha)
A lua,de facto, está sempre no chão do céu...e nele passa um velho homem a cumprir a sua sentença divina...levar um fardo de lenha às costas...como bem se vê nas luas cheias... É um singelo desabafo meu, de choro contido e nó seco na garganta, meu querido Urbano.
XII- “Foste sempre aquele/ que nos mostrou/a urgência do sonho…e a liberdade”
E para terminar , por ora, partilho também, da lutadora e amiga comum, os versos que M.Tereza Horta te dedicou na tua partida:
«Foste sempre aquele/ que nos mostrou/a urgência do sonho/
O gesto solidário/o valor da palavra
Falavas de honra e amizade/
Contigo aprendemos/ a coragem/
Meu amigo de luta /e liberdade
XIII-O Dia Último e o Primeiro. Nenhuma Vida
«Há borboletas imóveis no colo da tarde. São promessas. Jovens altivos e duros, meia dúzia deles, parecem dizer, à maneira do Cristo da Justiça: não é a paz que vamos empunhar, mas a espada, a espada das nossas queixas, das nossas aspirações, de todos os sonhos que sufocámos.Aprende, rapariga que passas, bonita mas constrangida. O próprio ar te deseja e te força a baixar os olhos. Levanta-os, aprende a imensidão deste dia.»…[ em “O Dia Último e O Primeiro(1999)]
«Daqui me vou despedindo, pouco a pouco, lutando com a minha angústia e vencendo-a,dizendo um maravilhoso adeus à água fresca do mar e dos rios onde nadei,ao perfume das flores e das crianças, e à beleza das mulheres.» [do prefácio do teu ultimo livro a editar:”Nenhuma Vida”]
Sabemos como, na tua vida, te marcou o AMOR na criação e perca.
Mas nessas lutas-com derrotas e vitórias- foste sempre de corpo inteiro. É aí que, na nossa memória, tu-Amigo Urbano-ascendes à eternidade e à imortalidade. Na memória dos que quiseste que fossem teus queridos e teus amigos, na memória das tuas acções e da tua obra, no desempenho pelo cimentar do nosso Abril da Liberdade.
Todos deixaremos de estar cá. Que essa falta possa ser compensada, como no teu caso, pelas sementes que deram fruto. Pelas sementes que deixas para sempre, as do teu génio e trabalho, da tua doçura e afectividade e as do teu firme caráter e verticalidade, as de quereres um mundo melhor, mais solidário e verdadeiramente humano.
Ficamos mais pobres sem ti.Ficaremos mais ricos com a memória do teu estatuto e estatura, de ti e da tua obra.
Foi bom ter-te. Será bom manter-te entre nós. Os teus capitães de Abril e toda a gente de Abril te manterão vivo. Manteremos
Até já, Urbano amigo…
Manuel Duran Clemente
(10 de Agosto de 2013)