Divulgamos a intervenção que Baptista Alves, na qualidade de presidente da Assembleia Geral do CPPC fez na iniciativa promovida por este organismo e realizada em 12 de Janeiro de 2023 na sede da Fundação José Saramago.
A defesa da Paz: urgência do nosso tempo.
O percurso da humanidade, desde sempre e em todos os lugares, tem sido marcado pelo sistemático recurso ao uso da força na resolução dos conflitos de interesses entre os diferentes grupos, sejam eles tribos, nações ou comunidades de nações.
Séculos de vivências vêm demonstrando quão difícil e penoso tem sido este caminho, a que, um acelerado e vertiginoso desenvolvimento tecnológico, tem acrescido capacidades quase ilimitadas de destruição e de morte.
Deixemos para trás os tempos em que os diferendos entre Estados Soberanos eram resolvidos pelo uso da força sem limites, a força militar como instrumento da política, ou a política por outros meios ( Clausewitz) e fixemo-nos nos tempos modernos que liminarmente, pelo menos na teoria, rejeitam este princípio.
No século XX, dois grandes conflitos mundiais trouxeram à luz do dia tudo quanto de mais irracional a inteligência humana é capaz de imaginar:
A I Guerra Mundial, iniciada em 28 de Julho de 1914, na sequência do assassinato do Arquiduque Francisco Fernando da Áustria, desencadeia-se num momento histórico que regista um forte crescimento do potencial económico e militar das potências imperialistas, em consequência da revolução industrial, com particular relevância na Alemanha.
A disputa por mercados, território e fontes de matérias primas, vai abater-se sobre as colónias de outros países. Portugal entra nesta Guerra por esta mesma razão, ou seja, a defesa do seu império colonial.
A I Guerra Mundial termina em 11 de Novembro de 1918,com a vitória dos aliados e um total de mais de 10 milhões de mortos. Portugal registou 10mil mortos e milhares de feridos.
A SOCIEDADE DAS NAÇÕES
Para prevenir a repetição duma catástrofe de dimensões tão aterradoras, foi estabelecida em Junho de 1919, aquando da elaboração do Tratado de Versalhes, a Sociedade das Nações (SDN), também conhecida por Liga das Nações.
Constituiu-se como uma primeira tentativa de dotar a sociedade internacional de um mecanismo de segurança coletiva, diminuir os horrores da guerra e encorajar a procura de soluções pacíficas para os problemas e conflitos entre as nações.
Limitar o uso da guerra à defesa nacional e à execução de obrigações internacionais impostas por uma causa comum e pugnar pela redução dos armamentos nacionais são dois dos principais objectivos marcantes do Pacto da Sociedade das Nações, que naturalmente incluía também um conjunto outro de regras tendentes á redução dos horrores da guerra e às indemnizações decorrentes da destruição provocada pelos agressores vencidos.
A sua vigência foi curta e acidentada, não tendo conseguido prevenir o deflagrar de um novo conflito mundial em 1939, apenas 20 anos depois.
A II Guerra Mundial, inicia-se em 1 de Setembro de 1939, sendo necessário ir um pouco atrás para tentar identificar as razões que levaram ao conflito.
Desde logo a crise que se iniciou nos EUA, em Outubro de 1929, por uma crise da Bolsa e que assumiu rapidamente um carácter mundial e, muito particularmente, porque às potências que saíram derrotadas da I Grande Guerra, como a Alemanha- ou que não beneficiaram da vitória, como a Itália e o Japão- potentados industriais e financeiros, estavam interessados num novo conflito que, por um lado, lhes proporcionasse uma nova partilha de territórios, mercados e fontes de matérias primas e, por outro lado, lhes permitisse o esmagamento das reivindicações operárias e populares que a vaga revolucionária no pós I Grande Guerra e o seu mais saliente resultado, a Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, animavam.
A II Guerra Mundial, foi o mais brutal e sangrento conflito que a Humanidade já conheceu: nos campos de batalha, nas prisões e campos de concentração e extermínio em massa, sob os bombardeamentos ou de fome e doença, nas cidades e vilas arrasadas, morreram cerca de 60 milhões de pessoas e muitas outras ficaram feridas, estropiadas e traumatizadas.
Milhares de localidades foram destruídas e a economia e património cultural dos países envolvidos sofreram danos incalculáveis.
Nunca será demais lembrar, o maior pesadelo da Humanidade, o lançamento das bombas atómicas sobre Hiroshima, em 06 de Agosto de 1945 e Nagasaki, três dias depois, em 09 de Agosto.
A cidade de Hiroshima, com cerca de 350.000 habitantes, ficou quase totalmente destruída (90%).De imediato morreram 80.000 pessoas e, nos três dias seguintes, mais 40.000 pessoas, a que se acrescentaram efeitos terríveis das radiações na saúde dos sobreviventes.
Nagasaki, cidade com 263.000 habitantes, foi igualmente destruída. De imediato morreram 40.000 pessoas e, nos três dias seguintes mais 80.000 pessoas. Os efeitos dos bombardeamentos nucleares prolongaram-se pelas décadas fora, até aos dias de hoje, com doenças do foro oncológico, malformações e outras dramáticas consequências.
A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
Face a toda esta imensa tragédia, em Outubro de 1945 é constituída a Organização das Nações Unidas (ONU), criada com o objectivo de prevenir outro conflito internacional. Integrada inicialmente por 53 países, tem actualmente 193 membros efectivos. A manutenção da paz, a solução pacífica dos conflitos, a igualdade entre nações, sejam elas grandes ou pequenas, e a promoção do progresso social tornam-se elementos centrais das relações entre países.
Na Carta das Nações Unidas, pode ler-se:
“Nós, os povos das Nações Unidas decididos
A preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade;
A reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas;
A estabelecer as condições necessárias à manutenção da justiça e do respeito das obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional;
A promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de um conceito mais amplo de liberdade; e para tais fins
A praticar a tolerância e a viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos;
A unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais;
A garantir, pela aceitação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada não será usada, a não ser no interesse comum;
A empregar mecanismos internacionais para promover o progresso económico e social de todos os povos;
….”
Nos anos que se seguem o Mundo conhece alterações profundas.
Um forte movimento libertador, impulsionado pelas forças antifascistas, democráticas e patrióticas em cada um dos países, desenvolve-se e conquista posições importantes ao nível dos direitos laborais e liberdades democráticas e ao nível dos direitos universais à saúde, à educação e à protecção social. Nas colónias e nos países dependentes travam-se lutas de libertação nacional.
Mas cedo também se esqueceram os princípios da Carta.
A GUERRA FRIA
Sustentados no poderio económico com que saíram do conflito e no monopólio da arma atómica, os EUA (juntamente com a Grã Bretanha) rompem a grande aliança vencedora da II Grande Guerra e reforçam a sua presença militar na Europa e no Oriente.
A contenção do comunismo e o combate à União Soviética são o pretexto para a corrida aos armamentos e a proliferação de bases militares avançadas.
Em 1949, é constituída a Organização do tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO).
É perante esta realidade, que cidadãos de todo o Mundo, tendo à cabeça alguns dos maiores vultos da ciência, das artes e da cultura, daquele tempo, onde podemos situar nomes como Frédéric e Irene Joliot-Curie, Pablo Picasso, Pablo Neruda, Jorge Amado e os portugueses Fernando Lopes Graça, Maria Lamas e Alves Redol, se unem na criação duma consciência colectiva de luta em defesa da Paz e participam, nos anos de 1949 e 1950, na criação do Conselho Mundial da Paz.
Em 18 de Março de 1950, mais de 300milhões de pessoas em todo o Mundo assinaram o apelo de Estocolmo contra as armas nucleares, lançado pelo renomeado cientista Frederic Joliot- Curie e pelo Movimento Mundial pela Paz.
A guerra da Coreia, teve início em 25 de Junho de 1950
A guerra do Vietnam, em 30 de Abril de 1955
Em 14 de Maio de 1955, é criado o Pacto de Varsóvia, aliança militar entre a união Soviética e outros países do leste europeu.
A procura do equilíbrio militar e estratégico entre os dois blocos, conduziu a uma desenfreada corrida aos armamentos e um enorme desenvolvimento das armas nucleares e dos vectores capazes de as transportarem, procurando, cada um por sua vez, sobrepor-se ao outro.
Em 1962, o Mundo, pela primeira vez, ficou à beira de uma confrontação nuclear entre os EUA e a União Soviética, em consequência da tentativa de instalação em Cuba, por parte da União Soviética, de sistemas de lançamento de mísseis balísticos, em resposta à instalação por parte dos EUA do mesmo tipo de armamento na Turquia e em Itália.
Funcionou a dissuasão mútua. O Mundo respirou de alívio.
Entretanto perante a evidência de que a dimensão dos arsenais disponíveis era excessiva, as potências militares dominantes procuraram estabelecer acordos para a sua redução, em número, aliviando assim também os respectivos orçamentos.
Em 1968, é assinado o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNT), envolvendo os 5 países que as possuíam, na altura (EUA, URSS, RU, França e China)
Preconizava-se então também o desarmamento nuclear, universal, geral e completo.
É o tempo do,
DESANUVEAMENTO
Em 1975 é assinada em Helsínquia, pelos governos de 35 países (entre os quais os EUA e URSS), a Acta Final da Conferência sobre a Segurança e Cooperação na Europa. A igualdade soberana entre países, a abstenção do recurso à ameaça ou uso da força, a inviolabilidade das fronteiras e o respeito pela integridade territorial dos estados, a não intervenção nos assuntos internos e a resolução de controvérsias por meios pacíficos foram princípios acordados, que permanecem como o mais sólido caminho para o futuro da humanidade.
O Fim da “Guerra Fria”, marca o início de um novo período.
Ao invés do que seria expectável, um avanço no caminho da Paz, os vencedores da “Guerra Fria”, consideram estarem criadas as condições para se lançarem à conquista do Mundo e, de forma programada e determinada, estendem o seu poderio, agora sem adversário, vencendo a resistência daqueles que não se submetem aos seus interesses, fomentando e armando golpes de Estado e revoluções ditas “coloridas” e/ou através da agressão militar directa.
Foi assim:
-Desmantelamento da Jugoslávia de 1992 a 1995-
-Bombardeamento da Sérvia em 1999
-Afeganistão em 2001
-Iraque, em 2003
-Líbia, em 2011.
Entretanto o Mundo foi mudando, a Federação Russa recupera do abalo sofrido com a dissolução da URSS e emergem outros polos de poder económico e militar dispostos a disputar a hegemonia do poder global único.
A guerra na Síria é provavelmente o primeiro sintoma dessa mudança.
E, chegamos à guerra na Ucrânia, processo que começou com um golpe de Estado violento, em Fevereiro de 2014, por forças nas quais se incluíam os neonazis, apoiadas pelos EUA e pela UE, contra o presidente eleito da Ucrânia.
Em consequência, em Março de 2014, na Crimeia os separatistas pró-russos tomam o poder, apoiados por forças da Federação Russa, declaram a independência e, após referendo, a integração na Federação Russa.
A pretexto a NATO reforça o seu dispositivo na zona do Mar Negro.
No leste e sul da Ucrânia a disputa com os separatistas pró-russos foi objecto de acordo, constante do denominado “Protocolo Minsk”, assinado, em 5 de Setembro de 2014, pela Ucrânia, Rússia, República Popular de Donetsk e República Popular de LugansK, sob os auspícios da OSCE (Organização de Segurança e Cooperação Europeia). Este acordo, no essencial, impunha o cessar-fogo e garantia a concretização da autonomia das duas repúblicas integradas na Ucrânia.
O não cumprimento dos acordos, a continuação dos combates e a concentração de forças da Ucrânia na linha de confrontação indiciando intenções de resolução do conflito por meios militares, a acrescer às proclamadas intenções da Ucrânia em aderir à NATO, são os argumentos para a declaração da independência das duas repúblicas, de imediato reconhecidas pela Federação Russa e após referendo integradas na própria Federação.
Em Fevereiro de 2022, o exército russo dá início à denominada operação militar especial que no terreno vai assumindo dia após dia as proporções de uma confrontação directa com o exército ucraniano, apoiado este pelos EUA e seus aliados da NATO.
Parece ser hoje claro, que este conflito se insere numa estratégia bem mais ampla, orquestrada do outro lado do Atlântico, com objectivos bem definidos:
-enfraquecer a Federação Russa como primeiro passo para apontar a Pequim e esmagar o “milagre económico chinês”;
-reforçar a dependência económica e militar da União Europeia em relação aos EUA, acabando de vez com qualquer pretensão a uma voz autónoma no concerto das grandes nações;
-recuperar a supremacia militar mundial, abalada pela concorrência das potências emergentes dispostas a libertarem-se do abraço de ferro a que têm estado submetidas;
-manter e reforçar o domínio do comércio internacional, do sistema financeiro baseado no dólar e de todas as “ferramentas” tecnológicas que utilizam para continuar a sugar a riqueza dos outros povos e evitar assim o previsível colapso da sua própria economia.
A confirmar-se esta análise, a questão que se coloca é a de sabermos para onde estamos a caminhar.
A Federação Russa é uma potência nuclear, com um potencial de destruição equivalente ao dos EUA. Ambos os lados sabem que hipóteses têm de sobreviver a um confronto total. Nenhumas!
Afastada esta hipótese absurda, ainda que assustadoramente real, que Mundo nascerá pós este conflito que nenhum dos lados pode perder?
-Uma II edição da Guerra Fria?
Como se posicionarão, nesta hipótese, as diferentes potências mundiais e em particular as emergentes, algumas com problemas territoriais ainda não totalmente resolvidos e todas ávidas também de matérias primas e mercados?
-Uma nova ordem Mundial, assente na multipolaridade e no respeito pelo Direito Internacional?
A primeira hipótese, uma II Guerra Fria, poderá estar à vista, o que, a confirmar-se, nos fará viver uma nova era de equilíbrio do terror.
Para a segunda hipótese, Uma Nova Ordem Mundial, há ainda algum caminho a percorrer mas, a meu ver, é a única que poderá conduzir-nos a uma verdadeira PAZ Mundial, no respeito pelo Direito Internacional, construído sobre as grandes catástrofes do século XX.
A utopia, se ao serviço da Humanidade, é sempre benvinda, indesejável é a aceitação, por parte dos mais fortes, dos princípios para aplicação aos outros reservando para si próprios o direito de os não cumprir, ou de os interpretar em função dos seus interesses. Este é provavelmente o caminho que falta percorrer.
A urgência deste nosso tempo, para que outro possa existir, é a intransigência na defesa da PAZ.