Em defesa das Conquistas da Revolução







Intervenção de Lino Paulo

DIREITO À HABITAÇÃO
1.
Porquê falar do direito à habitação?
Naturalmente porque o imperativo da Constituição de Abril:
“Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”, (artigo 65º da Constituição da República Portuguesa)
Está longe de corresponder à realidade.
O facto é que, como Engels escrevia, em 1872, em “Para a Questão da Habitação” é que é claro como a luz do dia que o Estado actual (leia-se Estado da burguesia) não pode nem quer remediar a praga da habitação”.
De facto a carência de habitação corresponde a uma questão de classe. Na sociedade capitalista, tal como em estádios anteriores de desenvolvimento, a quota-parte de riqueza que cabe aos trabalhadores é diminuta e leva a que a maioria destes seja incapaz de aceder à compra ou aluguer de um alojamento de boa qualidade, bem localizado e em zona dotada de infra-estruturas e equipamentos.
Por isso a “praga” da carência de habitação tem sido um dos laboratórios do processo histórico da luta de classes. Por vezes o Estado, forçado pela luta dos trabalhadores, do seu Partido e dos Sindicatos, avança com medidas ditas de “Estado Providência”. Mas, logo que a correlação de forças é favorável ao capital, o Estado descobre-se como mero regulador, ciente das vantagens absolutas dos mecanismos de mercado e da co-responsabilização entre sectores público e privado, engordando este com a transferência de significativas verbas públicas.
O Estado serve, como é óbvio, os interesses da classe dominante. Se no processo da revolução industrial, o objectivo era o da maximização da renda fundiária em favor da burguesia e do capital industrial, hoje, no quadro do capitalismo monopolista de Estado, a habitação torna-se imobiliário e ganha dimensão estratégica para a acumulação de capital, por parte dos grandes grupos financeiros.

2.

É este o quadro de interpretação para a situação vivida no país aquando da Revolução de Abril.
A situação habitacional tinha ainda traços do mundo da revolução industrial, quando se verificou, por parte do proletariado nascente, a sobre ocupação dos bairros medievais (os mais degradados e insalubres), limitando-se o Estado a garantir à burguesia um conjunto de incipientes normas urbanísticas que possibilitaram a construção de “páteos”, “vilas” e “ilhas”.
Foi nestes locais, de elevada densidade de ocupação, em áreas de habitação reduzidíssimas e onde a insalubridade dominava, que se amontoavam as famílias trabalhadoras. No final do século XIX, contavam-se 50.000 habitantes nas “ilhas” do Porto e 30.000 nos “páteos” e “vilas” de Lisboa.
A República burguesa manteve no geral as mesmas políticas. De diferente apenas o facto de, como resposta à luta sindical, ter sido iniciada a construção de três bairros operários (Arco do Cego e Ajuda, em Lisboa e Arrábida, no Porto) concluídos já no regime fascista.
Durante o regime fascista, a posição do Estado face à habitação tornou-se mais complexa. Sendo um Estado totalitário da burguesia era, ao mesmo tempo, e nesta área, sujeito à pressão do exemplo do que se fazia lá fora, em especial no pós 2ª Guerra Mundial. O discurso da preocupação face à insalubridade dos bairros proletários aparecia em consonância com uma Europa que se reconstruía, segundo novos critérios urbanísticos e construtivos. E ao mesmo tempo a substituição desses bairros dava resposta ao medo, face ao perigo de aí ser mais fácil a propagação das ideias revolucionárias.
Nasceu assim um Estado interveniente, num conceito de “casa para pobres” rigidamente vigiadas e onde às autoridades administrativas cabia o direito de proceder ao desalojamento, sempre que os ocupantes se “tornem indignos do direito de ocupação que lhes foi concedido” ( Artigo 12º do Decreto n.º 35106, de 6 de Novembro de 1945). Ou seja o direito à habitação não só não estava garantido, como ainda havia legislação “garantindo” que se podia ser arbitrariamente privado da habitação.
Mobilizando os “corpos administrativos” e Misericórdias e, após 1950, com recursos da Caixa de Previdência, foram produzidos pelo Estado, entre 1940 e 1970, cerca de 59.000 fogos. Nesta data, a promoção de habitação pelo Estado correspondia a 8% do total de habitação produzida, sendo esta uma percentagem muito inferior à verificada no resto da Europa.
Entretanto, em 1966, foi criado o Fundo de Fomento da Habitação a quem coube o lançamento de um significativo conjunto de programas habitacionais com mais de 1.000 fogos cada (os Planos Integrados). No geral vêm a ser concluídos após o 25 de Abril.
Durante os últimos anos do regime, a partir dos anos sessenta, assistiu-se ao agudizar das carências habitacionais em torno das grandes cidades. Para isto contribuiu a política de expansão industrial, oferecendo emprego pouco qualificado às populações de um interior economicamente deprimido e de onde o êxodo rural já havia tido início com a emigração para o estrangeiro.
A este avolumar de carências respondeu o regime com o fechar de olhos ao crescimento dos aglomerados de barracas e dos chamados bairros clandestinos.
Não cabendo nesta intervenção o desenvolvimento do estudo destes “fenómenos”, importa deixar a opinião de que o crescimento de barracas e de clandestinos correspondeu de facto a uma política de habitação. Se assim não fosse, bem diferente teria sido, certamente, a sanha repressiva do regime. Refira-se que as áreas do loteamento ilegal se situaram sempre em zonas que, de momento, não interessavam à especulação imobiliária em crescimento no período marcelista. A especulação “cavalgava” o crescimento “em mancha de óleo” das cidades e os loteamentos ilegais ganhavam o espaço intercalar, muitas vezes áreas de reserva e terrenos sem aptidão urbana (leitos de cheia, grandes declives, solos geologicamente instáveis).
Refira-se a propósito que, pelo menos na Área Metropolitana de Lisboa, os loteadores do clandestino eram, na sua maioria, os mesmos que operavam na urbanização legal. E tendo naturalmente os mesmos parceiros financeiros.

3.

O regime democrático veio a herdar os resultados: em 1970 existiam cerca de 30.000 barracas e a área loteada clandestinamente, sem qualquer infra-estrutura ou equipamento, tinha dimensão tal que permitiria a construção de 450.000 habitações.
Um apontamento apenas sobre a questão dos solos. Se durante as primeiras décadas do regime, no seguimento aliás do procedimento tradicional, a competência de urbanizar foi eminentemente pública este entendimento foi invertido em 1965. Data de então a primeira legislação em que o loteamento urbano foi liberalizado, passando para os privados a competência de adquirir terrenos, infraestruturá-los e negociar os lotes. E apropriar-se das mais-valias.
Teve aqui início um processo imparável de especulação fundiária e de entrega da função de urbanizar ao capital financeiro.
O processo revolucionário, que se seguiu ao 25 de Abril, colocou o problema da carência de habitação na ordem do dia. E, pela primeira vez na história do país, o direito à habitação ganhou a dignidade de imperativo constitucional.
As reivindicações populares, num processo de mudança intensamente vivido e que, apontando o horizonte do socialismo, procurava estabelecer a igualdade e a justiça social, tiveram resposta, mesmo antes da aprovação da Constituição, nas medidas tomadas pelos Governos Provisórios. Destas, importa referir:
• a conclusão dos Planos Integrados e o lançamento de diversos programas de pequena e média dimensão;
• a criação do programa SAAL com o objectivo de proceder ao realojamento dos habitantes das barracas, no local, com inúmeros processos de auto-construção e com grande participação popular;
• a criação dos Contratos de Desenvolvimento para a Habitação que, para além de possibilitarem a construção de fogos de custos e qualidade controlados, permitiram apoiar a indústria da construção civil, vivendo então um complexo processo de ruptura com a anterior dominante “imobiliário/financeira”. E que permitiam ainda intervir ao nível da especulação praticada sobre o solo, ao limitarem o valor destes a uma percentagem de custo final da habitação (controlado).
Ainda neste período o Estado Português, se bem que com apoios internacionais, deu início ao processo de realojamento de cerca de trezentos mil cidadãos nacionais, provenientes das antigas colónias.
Os primeiros Governos Constitucionais prosseguiram, no geral, estas políticas lançando também alguns programas, ainda que incipientes, de renovação urbana e de recuperação de imóveis degradados.
Não obstante o primeiro acordo com o Fundo Monetário Internacional, negociado em 1977 e 1978 por um governo presidido por Mário Soares, haver levado a restrições no investimento público este prosseguiu, no sector da habitação, tendo-se atingido, em 1984, a percentagem máxima de promoção pública habitacional: 17.7%.
Muito embora esta percentagem ainda representasse uma pequena parcela da intervenção estatal necessária, ela era demasiado elevada para os desígnios do capital.
O segundo acordo de negociações com o FMI decorreu em 1983 e 1984, na vigência do Bloco Central (PS/PSD), chefiado por Mário Soares.
As imposições do FMI, obrigando a profundos cortem, no investimento e no consumo, conduziram, no imediato, ao aumento do desemprego e dos problemas sociais. Ao nível do investimento público foram colocadas severas restrições com o objectivo de conseguir “menos Estado”.
Estas restrições traduziram-se, no referente ao sector da habitação, por:
• dirigir quase exclusivamente os apoios e financiamentos públicos ao crescimento da promoção imobiliária e ao desenvolvimento do mercado de aquisição de casa própria;
• extinguir o Fundo de Fomento da Habitação;
• reduzir drasticamente a promoção e apoio aos Contratos de Desenvolvimento para Habitação.
• obrigar as Cooperativas de Habitação Económica a entrar num processo de desvirtuamento dos princípios cooperativos e a abandonar as intenções socializantes.
• alienar o parque habitacional público o mais rapidamente possível, ainda que, de início, apenas àqueles que nele habitavam.
Os anos seguintes ao segundo acordo com o FMI traduziram-se por um quadro social duríssimo:
• aumentou o desemprego, rondando os 9% da população activa (1983);
• viveu-se o flagelo dos salários em atraso, afectando cerca de 100.000 trabalhadores(1984);
• o consumo privado desceu em termos reais, mais de 4% (1983/4);
• e a inflação atingiu números superiores aos 30% (1983).
• alastrou a miséria e degradaram-se, mais ainda, as condições de habitação de muitas famílias trabalhadoras. O flagelo das barracas, cujo número havia diminuído na década anterior, aumentou de novo, em especial na Área Metropolitana de Lisboa.
As directivas deste acordo com o FMI, depois prosseguidas por orientações comunitárias, conduziram a um quadro de investimentos públicos na habitação, completamente afunilado no apoio à aquisição de casa própria.
Assim, por exemplo, entre 1992 e 2002, o Estado investiu:
• 811.000 Milhões de euros, na construção de habitação pública. Foram construídos 40.104 fogos;
• 201.702 Milhões de euros, no apoio à recuperação de fogos. Foram recuperados 23.050 fogos;
• 5.947.750 Milhões de euros, no apoio à aquisição de casa própria (nas bonificações e deduções fiscais). Foi apoiada a aquisição de 1.504.789 fogos.
Ao nível da promoção pública de habitação, o Governo, chefiado por Cavaco Silva, ao mesmo tempo que afirmava não caber ao Estado a responsabilidade pela resolução do problema habitacional, procurou endereçar responsabilidades às autarquias locais. Numa data ainda distante da aprovação da Lei que atribuiu competências, entre outras, na área da habitação (Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro), começaram “de facto” estas competências a ser imputadas ao Poder Local.
O Decreto-Lei n.º 226/87, de 3 de Junho, é o primeiro a estabelecer que “a resolução dos problemas de habitação dos agregados familiares de baixos recursos económicos passaria por uma colaboração entre o Estado e as autarquias”.
A colaboração da Administração Central correspondia a subsídio a fundo perdido que poderia ir até 50% do valor da construção. Os restantes 50%, de responsabilidade municipal, eram objecto de financiamento.
Apesar de se tratar de uma competência não atribuída e não obstante os elevados custos para os municípios, houve quem elegesse o problema da habitação como uma das prioridades municipais. Os municípios de Lisboa e Oeiras, assinaram, nos termos desta legislação, diversos acordos de colaboração. E terão começado, também aí, um complexo processo de endividamento.
Seis anos decorridos, com o Decreto-Lei n.º 163/93, de 7 de Maio, e ainda com Cavaco Silva como Primeiro-ministro, nova imposição foi colocada às autarquias: realojar a população residente em barracas, nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto. Era assim criado o chamado Programa Especial de Realojamento (PER).
O PER, delimitando o realojamento às famílias que viviam em barracas, afirmava-se essencialmente como um plano de cosmética urbana. Era profundamente injusto para milhares de famílias vivendo em sobre ocupação e em alojamentos degradados.
A ambição imposta às autarquias era significativa: obter solo infra-estruturado e promover, num período de cinco anos, o realojamento de 48.319 famílias, 33.415 na Área Metropolitana de Lisboa e 14.904 na Área Metropolitana do Porto.
O financiamento do programa seria garantido da seguinte forma: 40% de subsídio proveniente da Administração Central, 40% obtido através de endividamento e 20% de esforço imediato do município (percentagens referidas nos valores máximos dos fogos, definidos anualmente em portaria).
Um esforço suplementar era ainda exigido aos municípios: receber todo o património habitacional do Estado e que este ainda não conseguira vender.
Tratava-se de um património degradado, quer ao nível das habitações, quer ao nível de equipamento, infra-estruturas e espaços verdes. Tratava-se igualmente de um património em “deficit” de gestão. Como exemplo desta situação cite-se o sucedido em Setúbal. O município recebeu em 1994, 2.582 fogos do ex IGAPHE. Para além dos fogos e do espaço exterior estarem degradados, os arrendatários eram devedores de cerca de 750.000 euros.
Apesar das insuficiências e injustiças do PER e apesar de se tratar de uma competência imposta ao arrepio da Lei, sem transferência de meios financeiros e forçando a elevado endividamento, os municípios empenharam-se na concretização do programa. Não obstante, confirmou-se o irrealismo do prazo. Em 2001, decorridos oito anos, apenas se havia procedido a 73% dos realojamentos previstos. Hoje assiste-se ao drama social de se continuarem a fazer realojamentos com base, obrigatória, num levantamento de 1993. E continuam a existir 27.319 barracas (dados de 2001).
Nesta lógica, de desresponsabilização do Estado da responsabilidade de garantir o acesso à habitação, a legislação que se seguiu ao PER, procurou alargar as competências dos municípios, primeiro abrindo o programa a todo o país e depois possibilitando a aquisição de fogos devolutos para proceder a realojamentos.
É ainda nesta linha que surge o PROHABITA, criado pelo Decreto-Lei n.º 135/2004, de 3 de Junho. Este programa alarga o universo de situações a merecer o realojamento, possibilita a aquisição de prédios devolutos para reabilitação e posterior realojamento e permite a construção dos equipamentos em falta nos bairros de habitação pública.
Do PROHABITA poder-se-ia afirmar tratar de um razoável programa de habitação, caso a Administração Central assumisse a sua concretização ou transferisse para as autarquias os meios financeiros necessários à mesma. Como isto não é feito a maioria das autarquias não pode aderir ao programa face ao elevadíssimo esforço financeiro que este exige.
Veja-se a este respeito, o exemplo de um dos dois municípios que, em maior escala aderiram ao programa. O município de Coimbra assinou, em 2005, um protocolo visando a recuperação de 332 fogos, a construção de 140 novos fogos e o aluguer, para arrendamento apoiado, de 100 fogos. O investimento global é de 22 milhões de euros. Destes cabem ao município 13.5 milhões, dos quais 8.5 milhões são de endividamento. Acresce que o município é ainda responsável pelo pagamento de cerca de 60% da renda técnica dos fogos.
4.
Este o ponto de chegada deste percurso através das políticas nacionais para o sector da habitação. Nos 37 anos decorridos desde o 25 de Abril, este é um percurso que nos conduz de um Estado Provisor, com um papel directo na oferta de habitação, a um Estado Regulador que defende a privatização do parque habitacional público e passa a parceiros públicos sem meios, as autarquias, ou a parceiros privados e as suas funções.
Quanto ao papel das autarquias e dado viver-se um momento em que tanto se fala de transferências de competências em diversas áreas do Estado Social, seja-me permitida uma reflexão tendo como exemplo o sucedido na área da habitação.
De início tudo eram boas intenções. As competências deviam ser exercidas pelo Poder Local apenas porque estava mais próximo das populações e serviria até melhor. E a muitos autarcas o “poder de dar casas” também se afigurava simpático.
Depois, transferiram-se mais e mais responsabilidades sem meios. As populações deixaram de entender o problema da habitação como um problema do Estado e habituaram-se a procurar nas autarquias a sua resolução. Os eleitos locais passaram a ser penalizados por cumprirem programas limitados ou injustos e por respeitarem leis, duras, de arrendamento apoiado.
Agora, os Governos, este como o anterior, até já se permitem prescindir de uma simples Secretária de Estado da Habitação na sua estrutura orgânica e de procedem a cortes sistemáticos nas verbas, do Orçamento do Estado, destinadas ao Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana.
Neste processo, cabe ao actual Governo, na senda do praticado pelo anterior e na obediência cega aos ditames da troika, terminar com qualquer modelo, estruturado nacionalmente, de política de habitação, voltada para a promoção do Estado.
Às autarquias, sem meios, cabe responder às famílias carentes, deixar estiolar os programas habitacionais, alienar o património habitacional público e correr atrás de parcerias público-privadas, alicerçadas em fundos imobiliários, que venham entregar ao capital financeiro as mais-valias da reabilitação urbana.
E isto num país onde, apesar do excedente de cerca de 550.000 fogos, se continuam a verificar pesadas carências habitacionais, na ordem dos 180.000 fogos, naturalmente destinados a famílias de mais fracos recursos. Num país onde, em nome da reabilitação urbana, as únicas propostas conhecidas se destinam ao aumento das rendas e à simplificação verdadeiramente criminosa dos despejos. Num país onde 240000 famílias perdem a habitação em favor da banca.
Como é óbvio é preciso lutar contra este estado de coisas. É preciso colocar de novo na ordem do dia a luta pelo direito à habitação. É preciso lutar para que o Estado se reposicione como mais e melhor Estado, na defesa e ao serviço daqueles que menos têm e mais precisam.

Lino Paulo
18 de Novembro de 2011