Intervenção de Duran Clemente



Intervenção de Duran Clemente no Debate - 35 Anos da Constituição da República. Acção e papel dos Governos de Vasco Gonçalves

MFA e Vasco Gonçalves
-O que era o MFA
Falar do Movimento das Forças Armadas (MFA) e de Vasco Gonçalves (VG),das Conquistas da Revolução e, no âmbito destas, de uma das conquistas “fundamentais” : a Constituição da República de 2 de Abril de 1976 - (vão 35 anos) - é termos, antes de mais, de falar dum MFA como um conjunto de militares, constituídos num corpo unitário, mais ou menos coeso, que com a experiência e aprendizagem na guerra colonial e com as contradições e motivações da época são capazes do acto sublime:
- o da Libertação de um Povo (e também dos Povos colonizados em sintonia com os seus movimentos libertadores)
Mas também teremos de reflectir que esse mesmo “MFA não era um movimento revolucionário: tinha revolucionários nas suas fileiras mas isso não fazia dele um movimento com essas características” (citamos,VG). Procurava sobretudo realizar um programa que tinha como base o derrube do regime ditatorial e fascista, acabar com a guerra colonial e instaurar um regime democrático. Mas dentro do MFA havia militares com várias tendências e diferentes graus de politização. Não era um corpo homogéneo e muito menos de homogeneidade revolucionária. São palavras do próprio VG: ”os aspectos mais progressistas da actuação do MFA são motivados pelo levantamento popular num sentido revolucionário”. E pelas lições dadas por todos os antifascistas, na sua estóica, luta contra a ditadura e colonialismo.
[…faz hoje 57 anos, 20 anos antes da nossa alvorada, uma simples camponesa era barbaramente assassinada. “Antes morrer que ser escrava”, foi o sentido das suas últimas palavras. Alentejo. Baleizão … chamava-se Catarina… 19 de Maio de 1954…]
Foi o pulsar do Povo (dos Povos) e a força da sua razão e exemplos como este de Catarina Eufémia, entre muitos, que também nos conduziram à acção de revolta.
-Vasco Gonçalves e a vertente progressista do MFA
Falar de Vasco Gonçalves e das razões que nos trouxeram hoje aqui para debater e reflectir é sermos fiéis à justiça e ao reconhecimento. É falar de Vasco Gonçalves, da sua acção como militar e politico revolucionário [seja como “capitão de Abril”, como membro da CC do MFA, como primeiro chefe da 5ªa Divisão do EMGFA, seja como primeiro-ministro dos 2º,3º,4º e 5º Governos Provisórios…seja como um dos mais puros capitães de Abril caluniado e vilipendiado]. É reflectir também sobre a vertente do MFA que sempre com ele esteve e sobre as iniciativas e organizações criadas, sob o seu impulso, e que mais não fizeram que, ao dar-lhe apoio, apoiarem o Povo, apoiarem a Revolução
É , ainda e sempre, falar da intervenção de VG, também na colaboração do texto final, do próprio Programa do MFA, como na sua interpretação deste.
Para Vasco Gonçalves havia militares que faziam do Programa do MFA uma leitura estática, respeitando apenas o texto, mas havia outro MFA, a que ele pertencia e era a sua referência, a entendê-lo como um projecto suficientemente aberto à evolução da própria realidade. Para ele, e para o MFA revolucionário, novas dinâmicas surgiram que, não estando previstas à partida, impuseram uma interpretação “não apenas literal” do Programa do MFA. Programa este onde estão expressas as acções programáticas essenciais e que constituem emanação profunda das gentes sacrificadas deste país, dum Portugal oprimido e isolado durante 48 anos, exigindo:
- “numa nova política económica…… uma estratégia anti-monopolista”…”e
- “numa nova politica social…… a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo mas acelerado da qualidade da vida de todos os portugueses”
O programa do MFA é emanação da vontade dum povo e dum povo inteiro, daquém e de além-mar, onde os capitães de Abril, durante longos treze anos, beberam ensinamentos: com os combatentes, dum lado e doutro, com as contradições do fascismo e do colonialismo…mas também com as lições dos ventos da época e de quantos, resistentes e militantes, durante meio século lutaram e morreram, pelo fim da noite escura, pelo fim da ditadura…
A acção do MFA, sendo o resultado duma experiência de organização e unidade, de jovens capitães, que emerge, se consolida e se organiza, é com as armas nas mãos do povo-soldado…que faz o 25 de Abril.

-A aliança Povo-MFA
A partir dessa alvorada luminosa, da “Renascença da Esperança”, Vasco Gonçalves é quem melhor interioriza o Programa do MFA, como bússola que traça um rumo e lhe dá mais força para a liderança das “Conquistas da Revolução”, em nome do seu povo, e que a Constituição de 1976, contra ventos e marés, acabará por consagrar.
A partir do momento que V.Gonçalves dá ao programa do MFA o único significado que ele podia ter: uma ordem de missão para acabar de vez com os resquícios fascistas e construir uma democracia do Povo e para o Povo, vê-se a braços, e de que maneira, com os inimigos desta dinâmica. E o grave é que isso aconteça dentro do próprio MFA…após a queda de A.Spínola e dos falhanços das forças conservadoras militares e civis que o acolitavam.
Os “capitães de Abril” e a seus representantes - a Comissão Coordenadora do MFA - (CCMFA) foram, ainda, firmes e coesos, quer no “golpe Palma Carlos”, em Julho, quer no “golpe da maioria silenciosa”, em 28 de Setembro. Resistindo aos ímpetos dum projecto pessoal e de ganância de Poder, o MFA não só afasta e recusa os propósitos do General Spinola, como escolhe, entre um dos seus militares, Vasco Gonçalves para a responsabilidade de chefiar o segundo e o terceiro Governos Provisórios, respectivamente a 18 de Julho e a 1 de Outubro. Em ambas as tomadas de posse Vasco Gonçalves reitera a decisão inabalável de cumprir escrupulosamente o Programa do Movimento e em entrevista, horas depois desse acto, é absolutamente claro ao afirmar: “A unidade entre o Povo e o MFA constitui condição fundamental do nosso progresso”.
Sabíamos de que Povo o General falava…mas e que se passava no seio do MFA?
Do MFA que não tinha falhado nas medidas e conquistas politico-sociais, impulsionadas pelos governos de V.G. e fora imperturbável no processo, complexo e difícil, do início da descolonização (mesmo, e ainda, com Spínola?
Esse MFA, apesar das então criadas 5ªDivisão do EMGFA, das acções da Dinamização Cultural, das mais diversas e criativas formas de esclarecimento público, começava agora, para os revolucionários, a dar os primeiros sinais….de vulnerabilidade ”…da incapacidade de o MFA revolucionário estender a sua influência a todas as Forças Armadas, do demissionismo, quantas vezes deliberado, de oficiais não afectos ao MFA, das dúvidas e receios de militares menos esclarecidos politicamente, cuja formação conservadora e tradicionalista os perturbava e tornava incompreensível o processo revolucionário…tendo neste aspecto um papel muito negativo as actividades provocatórias esquerdistas.” (citamos, VG). E não esquecendo, num xadrez mais alargado, a interacção/influência daquilo que o fascismo deixara implantado nas nossas terras…do caciquismo e do clero conservador e preconceituoso… do índice de analfabetismo que rondava os 33 % da população…!!!
Mas cisões maiores se cavavam precisamente na necessidade de salvar a economia para salvar a revolução e aqui ressurgem os disfarçados ataques do “capital” (quer nacional quer imperialista) que, sentindo-se a perder terreno, é exímio na concretização dos mais ousados esquemas de destabilização e de divisão.
Ora, não só pelo que se referiu, como pela evolução dos acontecimentos, mesmo o núcleo duro do MFA deixa-se descompensar e perde em firmeza e coerência aquilo que lhe oferecem em debilidade e inconsequência…na aspiração duma “velha aparente estabilidade de ordem externa” que jamais disfarçará uma “profunda desordem interior e mal-estar social”, absolutamente em contraste com um novo Portugal que se queria como sociedade mais justa e equilibrada.
Bem se esforçou Vasco Gonçalves e se esforçaram os revolucionários militares e civis.
-Ruptura anunciada/28 de Setembro
Na sequência do 28 de Setembro, nasce o Conselho dos Vinte, um conselho directório que procura acabar como o fim dos ataques á genuína “essência dos capitães de Abril” e ao cumprimento do seu programa…não perder nos gabinetes e/ou pela mão dos militares conservadores o que já se conquistara. Reforça-se, assim, a necessidade e a vontade da institucionalização do MFA.
Nascem as Assembleias do MFA (AMFA) suscitadas pela positiva experiência da sua criação no processo de descolonização da Guiné-Bissau. Abre-se ainda mais o caminho para referida institucionalização.
Iniciam-se as conversações com os partidos para lhes comunicar o desejo da institucionalização e criar um modus-vivendus com eles. O Pacto MFA-Partidos.
A Dinamização Cultural e acção da Quinta Divisão empenham-se, ainda mais, em garantir a continuidade e desenvolvimento do processo revolucionário.
Vasco Gonçalves e o MFA, através do seu Boletim, dirigido pela CCMFA e corpo redactorial da 5ª Divisão, fazem sair, um artigo de fundo, sob o título”O MFA: do Politico ao Económico” em meados de Novembro de 74. Apela para a urgência de se tomarem medidas de carácter económico, lançar as bases para um efectivo controlo da actividade básica pelo Estado e da luta contra a sabotagem ainda vigente… criando condições que permitam melhorias da qualidade de vida dos portugueses e promovam o desmantelamento da base económica do fascismo, da indiferença dos latifundiários às solicitações do Governo e do MFA para a realização de projectos de aproveitamento económico das terras. Foi então criado, pelo Conselho de Ministros, um grupo de trabalho, constituído por certas personalidades, da área económica e social. O grupo, coordenado por Melo Antunes, demorou excessivo tempo a produzir o documento. Quando apresentado, apesar das reservas de VG e do próprio MFA, ele acabou por ser aprovado, quer no CR quer numa AMFA a 21 de Fevereiro de 1975.
-11 de Março/o sonho do socialismo português
Com a tentativa golpista do 11 de Março, precipitada novamente por A.Spínola e as suas hostes desesperadas, para fazer gorar a institucionalização do MFA…tudo se precipita. Na célebre A.MFA de 11 para 12 de Março de 1975, a par da confirmação das eleições para a Assembleia Constituinte, como previsto e como ponto de honra do Programa do MFA, opera-se a institucionalização do MFA, criando-se o Conselho da Revolução (CR) dois dias depois. No patamar económico-social são apontadas a necessidade de se tomarem as medidas mais revolucionárias deste processo nomeadamente as nacionalizações. Estas foram das primeiras medidas do neófito CR. Foram dados poderes a Vasco Gonçalves para formar a 4ª Governo Provisório que inicia suas funções a partir de 27 de Março. A reestruturação da banca nacionalizada; o controlo das empresas privadas pelo Estado; a criação do sistema de Planeamento; o prosseguimento da nacionalização dos sectores básicos e a reforma agrária, são as principais bases da agenda e programa deste governo.

-Contradição entre o Processo eleitoral e o Processo revolucionário
Avança-se para eleições e para o pacto: MFA-Partidos. Já referimos anteriormente o alcance deste Pacto “não perder prematuramente as conquistas alcançadas e tentar incluí-las na Constituição de 1976”.Embora houvesse consenso no núcleo duro do MFA veio-se a confirmar que quem punha reservas às medidas revolucionárias mais tarde se constituiria no chamado “grupo dos nove”.Mas aos partidos de direita e incluindo o PS não interessaria divulgar tais reservas antes das eleições. Houve aqui um tacticismo eleitoralista…Percebe-se bem porquê.
Após as eleições e com a vitória do Partido Socialista (PS) logo seguido pelo PPD estes partidos procuraram acabar com o processo revolucionário, agravando as condições que eram naturais entre os dois processos e tudo serviu de pretexto. O Processo revolucionário foi travado mas não completamente derrotado: as conquistas alcançadas durante o período mais criativo da Revolução foram, efectivamente, todas consagradas na Constituição de 1976.
A partir das eleições o PS inicia acções e um comportamento nada conducente com o seu ideário socialista e promessas eleitorais, fomenta divisões entre sindicatos e trabalhadores e salienta-se como um dos principais aliados das forças contra-revolucionárias.
O capital e os inimigos da revolução, (sobretudo os que perderam privilégios) montam centrais de intriga, de intoxicação e de inquietação junto das populações. Faz-se crer que VG e o Partido Comunista (PCP), “ são uma e a mesma coisa” e que pretendem controlar tudo. O anticomunismo primário sai à rua. Alarmam-se pessoas, sobretudo as menos esclarecidas com fantasmas e preconceitos.
Assim, PS e PCP, cavam entre si profundas cisões e consequentemente elas repercutem-se no movimento popular e no seio do MFA. Vasco Gonçalves chega a ter reuniões com Mário Soares e Álvaro Cunhal, mas sem sucesso.
De modo a superar as contradições partidárias, sem nunca pôr em causa os Partidos mas, num momento delicado da vida nacional, procurando uma plataforma de unidade estratégica entre si, VG e o MFA, para além do diálogo que incentivam entre eles, procura também avançar para o aprofundamento duma política de estímulo à participação popular, através das suas organizações e ao estreitamento das relações entre o MFA e estas estruturas, procurando institucionalizar a Aliança POVO-MFA.
-O ataque a Vasco Gonçalves e ao MFA progressista/” Verão Quente”
Na própria Assembleia Constituinte os deputados do PS e dos partidos mais à direita atacam o Governo.
VG e a corrente dos militares do MFA, mais à esquerda, tentam “superar as contradições partidárias” com a aprovação de documentos como o PAP – Plano de Acção Política e do Documento Guia da Aliança Povo-MFA. Embora este último, não reunisse grande consenso. Mas é sobretudo este Documento-Guia com forte influência dos sectores radicais do MFA, que leva a saída dos ministros do PS e do PPD do 4º Governo e à criação duma gravosa situação que só se regulariza em 8 de Agosto com o inicio dum novo Governo, este apartidário e com carácter transitório - o 5º Governo Provisório… cuja tomada de posse se realiza um dia depois da publicação do designado “Documento dos Nove”(que põe em causa VG e o MFA revolucionário) e também cinco dias antes do dito “documento de Oficiais do COPCON”(que procurando contrapor-se àquele documento, abre a porta a futuras posições de radicalismo contra VG e os militares da sua linha).
Porque os nove oficiais do documento referido são todos do CR instala-se definitivamente uma cisão neste órgão. Na tentativa da superar é ainda criado nessa ocasião um directório constituído por Gosta Gomes, Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho.
Estava aberta a contestação a V.G. já com alguns anteriores incidentes, não só, por parte dos oficiais ditos moderados, como por parte de ministros do PS a quando do chamado caso (jornal) “República”.
Após peripécias várias, num efectivo “Verão Quente” de 1975, com distúrbios graves, sobretudo a norte do país provocados e incendiados por um então grupo contra-revolucionário - MDLP -, com as acções desesperadas da extinção, em Agosto, da 5ª Divisão do EMGFA, cujas instalações são assaltadas pelo Regimento de Comandos às ordens de Otelo Saraiva de Carvalho, chefe do Comando Operacional do Continente (COPCON), com um documento “insultuoso” subscrito por este a convidar de forma nada digna o abandono de VG de primeiro-ministro e a proibi-lo de entrar em quartéis e de mais factos perturbadores e perturbantes de conflitos de gabinete e de rua… o processo precipita-se .É numa AMFA em Tancos, constituída por militares, delegados, intencionalmente seleccionados, que o MFA progressista e revolucionário se vê afastado…do seu processo, ao decapitarem-lhe a sua cabeça…aquele que será sempre para nós (quer militares do MFA que o seguiam, quer para as populações que o estimavam e amavam) mais do que o General Vasco Gonçalves…o eterno Companheiro Vasco…timoneiro das mais singulares e valiosas Conquistas da Revolução que esta Associação quer preservar, muito particularmente em sua homenagem e ao povo português…que o mereceu …que mereceu este HOMEM, simples,íntegro e revolucionário, ao leme desta barca.
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Passados mais de quinze anos VG dá uma longa entrevista a Manuela Cruzeiro, editada em livro, em 2002:
É de Vasco Gonçalves este excerto premonitório, da situação que vivemos, agora em 2011:
“…já havia o objectivo de romper com aqueles militares que mais consequentemente apoiavam as aspirações populares e travar o aprofundamento da democracia…e digo isto passados tantos anos…porque desde a queda do 5º Governo Provisório temos vindo a assistir à reconstituição duma democracia política que convive bem com as limitações dos direitos sindicais e políticos dos trabalhadores, com a destruição do sector público da economia, com a destruição da reforma agrária, com a sucessão de pacotes de Leis cada vez mais gravosos para os trabalhadores que vão sendo aplicados à medida que a direita e a reacção ganham cada vez mais força”.
Resta-nos, sem revivalismos nem endeusamentos, a obrigação de não deixar apagar a memória, para com as lições do passado estarmos mais preparados; conscientes que há vitórias e derrotas nas batalhas diversas que se travam nas revoluções, sendo como dizia Brecht: “que a grande vitória é continuar a lutar…a lutar por uma sociedade mais justa e igualitária”( tradução livre).
E também como diria o poeta ….”Um revolucionário/não cabe na politica/mas cabe/nos metros úteis da poesia estrita”
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[…19 Maio 2011/Debate na Casa do Alentejo, ciclo de iniciativas de lançamento da Associação Conquistas da Revolução ]
(*) OBS. Por razões de partilha de tempo, face às seis intervenções programadas, este texto foi objecto, na intervenção oral, de uma síntese feita pelo autor.