Fausto Neves |
Carlos
Paredes (1925-2015)
Apesar do “aviso”
escrito por João de Freitas Branco numa das suas críticas musicais, segundo o
qual Carlos Paredes continuava a “pedir desculpa a todos por ser apenas o
melhor guitarrista do mundo” –, era difícil resistir: desde que tinha chegado a
Espinho, para participar no Festival de Música local, Paredes não cessava de
nos interrogar acerca do cabimento da sua presença num festival dedicado à
música clássica, de repetir à exaustão a “pequenez” da sua guitarra e das suas
“modinhas” num Festival que trazia a Espinho nomes sonantes da música erudita
portuguesa e internacional.
Carlos Paredes surgiu no
certame, acompanhado por Luísa Amaro, que entretanto sucedera a Fernando Alvim,
na base harmónica sustentada pela guitarra clássica. Deixámo-nos preocupar pelo
ambiente criado por Paredes, pelas suas dúvidas permanentes e em crescendo, que
saltaram várias graduações ascendentes de ansiedade ao ver a sala onde iria
actuar, o grande auditório do Casino de Espinho. Pior ficou mais tarde, a
breves momentos do concerto, com a sala completamente cheia. Para além de toda
a ansiedade de Paredes, surge uma unha alegadamente quase a partir. Num esforço
sobre-humano, o nosso guitarrista consegue acertar com o bico do tubo de cola
no espaço entre a unha e o dedo – ambas as mãos tremiam como canas verdes… –, lá
descarregando uma boa porção, perante o nosso olhar incrédulo. Conhecedor das
ansiedades artísticas iminentes ao concerto, nunca tínhamos presenciado tamanho
“trac”!… Estaria capaz de tocar em palco uma nota que fosse na sua guitarra?
Apenas a serena conformação com o estado do parceiro musical, que emanava de
Luísa Amaro, me entreabriu uma ténue esperança que a coisa corresse bem…
E se correu!
Entrecortando com uns eléctricos acordes de afinação as palavras, na sua boca
tão prementes quanto cativantes, de saudação ao público e de ilustração acerca
do programa e da história do seu instrumento, Carlos Paredes atacou a primeira
obra com uma energia sobre-humana que ganhou de imediato a sobrelotada sala de
largas centenas de pessoas para um concerto memorável para todos os presentes.
No ano seguinte, Paredes
regressou ao Festival. (“Querem-me cá outra vez?!? Já me conheceram tudo no ano
passado!...”). Quis inovar. Desta vez desejava juntar ao concerto um elemento
de artes plásticas. Solicitou-nos um quadro no palco onde fixaria várias folhas
de papel-cenário com desenhos feitos por si, a propósito de cada obra. Já
conhecidas as brutais ansiedades pré-concerto do nosso visitante, agora preocupávamo-nos
com o famoso quadro, que nos parecia muito pequeno no enorme palco do Casino e
para uma sala muito, muito grande. A visibilidade estaria garantida para o
público mais afastado? E os próprios delicados desenhos, que antevíramos
fugazmente, iriam captar o público?
O certo é que em palco
Paredes era um verdadeiro amplificador de comunicação artística. E se todos
ainda temos presente a força da sua comunicação musical e guitarrística em
actuação pública, essa energia mantinha-se na convicção das palavras acerca do
programa e, neste caso – mistério! –, na própria “ampliação” dos desenhos: uma
sala cheia, tendencialmente barulhenta, ouviu religiosamente as suas palavras e
as suas referências aos desenhos e às obras correspondentes, a serem executadas
na sua guitarra mágica. As explosões de aplausos sucediam-se, até ao último
balbuciar de Paredes, reclamando timidamente o seu cansaço e anunciando
generosamente ainda mais um extraprograma “desta-vez-é-mesmo-o-último”!...
Carlos Paredes teria
cumprido no passado dia 16, 91 anos de idade, roubados por doença terrível, que
o separou da sua guitarra, primeiro, e depois da própria vida. De nós todos.
Herdeiro de uma insigne
família coimbrã de executantes de guitarra portuguesa – filho de Artur, neto de
Gonçalo e sobrinho-neto de Manuel – Carlos Paredes estudou piano, violino e
teoria musical, por insistência materna, o que lhe veio dar uma consistência
suplementar no desenvolvimento autodidacta dos seus estudos na guitarra
portuguesa, herança da família paterna. Tendo-se mudado para Lisboa, fez os
seus estudos liceais já na capital e iniciou a sua carreira profissional na
função pública (1949) como administrativo do Hospital de S. José.
Apesar de ainda fazer
alguns acompanhamentos de guitarra no início da sua carreira – chegou mesmo a
gravar com o pai –, Carlos Paredes entra em ruptura com a tradição paterna:
afasta-se de Coimbra como área preferencial de apresentações públicas – onde o
pai era considerado muito justamente como expoente máximo da virtuosidade da
guitarra coimbrã – e lança o seu instrumento de eleição numa senda solista
nova, virtuosística e, sobretudo, plena de liberdade. Onde soube amalgamar,
como todos os grandes mestres, um pouco de tudo o que herdou com o que soube
captar e sintetizar do seu tempo: em Coimbra de Artur, em Lisboa de Armandinho,
da clássica dos seus estudos, da organologia aprofundadamente estudada do seu
instrumento de eleição, da expressividade das linhas vocais do fado, do
abstracto virtuosístico das guitarradas de Mondego e Tejo. Como plasma de maturada
fixação e síntese de todos estes enciclopédicos elementos, a profunda
identificação com o seu povo, no seu drama de fascismo e nas suas alegrias e
ilusões de liberdade, o seu contributo permanente e persistente na busca de Abril,
na sua defesa e exigência, rumo a um mundo mais fraterno e justo, vibrante de
paixão como o som de Paredes, na sua entrega integral à Música e à luta.
Nessas suas andanças fez
caminho com outros artistas e intelectuais da oposição ao fascismo português,
donde relevaríamos, pelo exemplo de fusão de artes e de frentismo cultural
oposicionista, a concepção da intervenção pela arte global, soprada por Lorca e
tão bem desenvolvida por Lopes-Graça e pela eternamente efémera Manuela Porto: entremeando
as proibidas “Heróicas” com as toleradas “Canções Regionais” do Coro da
Academia dos Amadores de Música (na altura Coro do Grupo Dramático Lisbonense)
surgiam o Teatro, a Poesia e, aqui e ali, Carlos Paredes também.
Carlos Paredes foi
militante do PCP. Denunciado à PIDE, foi preso em 1958. Cruelmente separado da
sua guitarra durante ano e meio de cárcere viveu duros momentos na prisão. Para
sobreviver mimava a execução guitarrística apenas com os braços, por vezes com
um pente, fazendo os seus colegas de cárcere temer pela sua sanidade mental.
Lutava apenas contra a clausura, compunha mentalmente, sentia no seu colo as
asas da sua liberdade: a sua guitarra, “passarola” e caravela de sonhos de que
o tinham separado.
Saído da cadeia, foi
expulso da função pública. Por vocação e pela força das circunstâncias o
anónimo funcionário público que nos tempos livres emprestava a sua arte a
alguns serões musicais organizados por colectividades populares, passou a ter a
sua actividade artística como fonte principal de vida – embora ainda tenha
exercido as funções de delegado de propaganda médica.
Nesse primeiro ano de
liberdade recuperada – 1960 – escreveu a música de fundo do filme “Rendas de
Metais Preciosos” (Cândido Costa Pinto) e gravou em 1962, já com Fernando Alvim,
o seu primeiro disco EP a solo. Em 1963 compõe e grava o que seria um dos seus maiores
sucessos: “Verdes Anos”, música de fundo para o filme homónimo de Paulo Rocha,
inaugurando o “cinema novo” português. Retoma a colaboração com o mesmo
realizador em “Mudar de Vida”. Colabora com o teatro (Cardoso Pires e Bernardo
Santareno, e Grupo de Teatro de Campolide), acompanha os versos de Ary e, logo
após o 25 de Abril, de Alegre.
Progressivamente popular
e apreciado nos meios oposicionistas ao regime fascista, quer na
intelectualidade, quer nas organizações populares e juvenis, Carlos Paredes
grava o seu primeiro LP a solo, “ Guitarra Portuguesa”(1967-42 anos!!), a que
se segue “Movimento Perpétuo” e o single “Balada
de Coimbra”. Levado aos lares portugueses pelo programa de televisão “Zip-zip”,
admirado publicamente por Amália Rodrigues, acaba por representar Portugal no
Olympia de Paris (1967), na Feira Mundial de Osaka e na Ópera de Sidney (ambas
as apresentações em 1970).
A sua fulgurante
carreira nacional e internacional estava lançada, o seu talento musical de
criador e de intérprete de elite, através de uma virtuosidade técnica
assombrosa fazia dele um artista inigualável, que através de todas estas
características rompia com o próprio fascismo, com as suas próprias e eternas
timidez e modéstia que soçobravam na penumbra dos “rasgados” enérgicos das
cordas da sua guitarra portuguesa, das frases melódicas enternecedoras, na
velocidade cósmica das passagens rápidas do seu dedilhar insuperável.
E a Festa de Abril
chegou em 1974. Apanhou o guitarrista com uma carreira construída a pulso, com o
seu extraordinário talento a vencer a má vontade do fascismo, da pequenez
nacional e… da sua própria timidez. Por incrível que pareça, a sua entrega
total à Revolução dos Cravos, apresentando-se por todo o país – da mais ilustre
sala ao salão de festas popular mais modesto –, e a sua reintegração na função
pública – com regresso anacrónico ao serviço de Radiologia do Hospital de S.
José – acabaram por travar a intensificação progressiva de gravações de discos
e de trabalhos de criação, sugeridos pela década anterior.
A imensidão do trabalho
cultural da Revolução de Abril absorveu-lhe completamente os tempos livres das
suas funções profissionais. O CD “Espelho de Sons” apareceria a público apenas em
1988, dois anos após a sua reforma, ordenando vários originais que fora
desenvolvendo em público na azáfama de 14 anos de vida democrática, nos fluxos
e refluxos de Abril.
Apesar da dúvida que
grita nos agudos da sua guitarra, imaginando-se até onde poderia ter ido a sua
carreira se tivesse recebido um estatuto de entrega profissional exclusiva ao
seu instrumento, este tempo foi, claramente, de consagração de Paredes. Figura
permanente da “sua” Festa do Avante e de inúmeras iniciativas do PCP, o
guitarrista emparelhou com outros gigantes da música improvisada como Vitorino
de Almeida e Charlie Haden, participou ainda em gravações de Carlos do Carmo e
de Adriano Correia de Oliveira e foi convidado especial de um concerto dos “Madredeus”.
No estrangeiro
representou o PCP em vários concertos realizados em países socialistas e entrou
no circuito comercial internacional ao actuar no Bobino de Paris (1980) e na
Alte Oper de Frankfurt (1982). Vasco Wallencamp coreografou a sua música para o
saudoso Ballet Gulbenkian em “Danças para uma Guitarra”, em cujas apresentações
Paredes actuou ao vivo.
Em 1984 apresenta-se
finalmente como solista principal de dois grandes concertos, realizados no
Auditório Nacional Carlos Alberto no Porto.
Em 1990 é-lhe concedida
uma bolsa de mérito cultural pela Secretaria de Estado da Cultura e em 1992
recebe a comenda da Ordem de Santiago da Espada. Nesse ano foi homenageado em dois
concertos no teatro São Luiz e um no Porto, no Teatro Rivoli.
Em 1993 inicia a
gravação de um novo CD, mas já não consegue terminá-lo, devido a problemas de
saúde. O seu material seria recolhido mais tarde no CD “Canções para Titi”. Toca
ainda, com esforço, na apresentação da Lisboa, capital europeia da Cultura, e
em Dezembro é-lhe diagnosticada uma grave doença degenerativa na medula, que o
obrigou a internamento e de que faleceu em 2004. Surgiria ainda o CD “Na
Corrente” (1996), com gravações inéditas de 1971 a 1973.
Na sua visão marxista do
Mundo, o amor profundo pela sua guitarra incluía a contradição dialética entre
o criador vulcânico e os limites opressores do cordofone, relação recomeçada a
cada concerto, repartindo do novo limite conquistado no anterior, para o
alargar um pouco mais longe ainda. Na boa tradição clássica não se distinguia
em Paredes o compositor do intérprete, nem se vislumbravam os limites de cada
um dos titânicos personagens que habitavam aquele homem bom, modesto e
cumpridor das suas funções profissionais administrativas.
Que se transfigurava em
palco na volúpia do gesto, no sentir da dor dos gemidos ou da opulência sonora da
guitarra. Mas que tinha pelo trabalho, fosse ele qual fosse, um respeito apenas
ao alcance do pensamento marxista. E esta talvez seja a chave para percebermos
o regresso feliz de Paredes, após o 25 de Abril, ao seu posto na Radiologia do
hospital de S. José.
A sua serenidade de
conversa e audácia visionária de palco acompanha-nos. O portuguesismo da sua
guitarra, pelos seus dedos, atingiu a universalidade. Para nós, a sua guitarra
chama-nos à terra “Em memória de uma camponesa assassinada” para construirmos o
Universo de “movimento perpétuo”.
Fausto Neves