Texto Periódico XV - EM DEFESA DE ANA JANEIRO

 

EM DEFESA DE ANA JANEIRO

Manuel Carvalho
Vogal da Direcção

Nunca viajou de avião, tão pouco de comboio, mesmo quando ia à vila por altura da feira de Março fazia o percurso de sete quilómetros descalça porque os sapatos velhos, descambados, não davam muito jeito ao andar e no regresso, vaidosa, com os sapatos novos ainda não moldados, dolorosos, também fazia parte do caminho descalça até porque os novos sapatos havia que poupá-los, para outros dias, mais felizes.

De camioneta só andou uma vez, a minha tia Ana Janeiro para ir visitar o seu homem, meu tio Olímpio Gonçalves, o sardinheiro, ao hospital de São José. Foi na camioneta da carreira e o meu pai foi esperá-la à Garagem dos Claras, ali junto da Almirante Reis.

Esteve em nossa casa dois dias, teria eu prá aí oito anos. Num desses dias fomos no eléctrico da Carris passear ao fim da tarde a Algés. Deambulámos. No lusco-fusco do aproximar da noite, passámos junto ao rio grande de Pedro Barroso, com a linha férrea de permeio, tal como nos campos da Golegã com o rio pequeno que corre estreito junto da linha do outro comboio fumarento, quando ela a olhar para o horizonte de águas calmas e de fraca rebentação exclama de espanto incontido: “EIA, TANTO ARROZ!” Arrozais dos seus horizontes e da procura do sustento do dia-a-dia nos campos alagados de águas paradas, nas terras da “Fanga,” de Redol, quer na plantação, na monda ou na ceifa com as sanguessugas sequiosas alapadas às pernas magras e secas a fazerem concorrência ao patrão agrário ou ao grande seareiro de terras a perderem-se de vista no horizonte da planície. À noite, depois de ter ateado a fogueira no lar térreo da chaminé para cozer as couves com feijão com um pedaço de toucinho já amarelo, ela para dar algum alívio às suas pernas doridas, sofridas, juntava-se ao seu homem a aquecerem-se no borralho com um pequeno tronco de figueira teimoso de queima difícil a soltar esguichos, do centro dos seus topos, com alguns silvos, de fumarolas brancas, da seiva leitosa ainda viçosa da árvore, acres ao cheiro, silvos esses, únicos ouvidos na silêncio da noite da cozinha silenciosa de chão de terra batida.

Pelo exposto e dadas as circunstâncias atenuantes, peço aos senhores jurados ambientalistas, que ilibem a Ana Janeiro de qualquer crime ambiental, mesmo considerando a queima daquele pedaço de tronco de figueira, julgado seco, que expelia do seu interior fumarolas brancas, acres ao cheiro.