Intervenção de Jorge Sarabando, coordenador do núcleo do Porto da ACR, na apresentação do livro
- 40º Aniversário da Constituição, A Conquista dos Direitos Democráticos-,
edição da ACR
Lisboa,17 de Novembro 2016
No ano em que celebramos os 40 anos de vida da Constituição da República, justo é lembrar a gesta revolucionária que a tornou possível. Assim poderemos compreender melhor o seu significado, porque não se limita, como as Constituições de outros Países, a enunciar princípios gerais e a regular o funcionamento do poder político. Vai muito mais longe, quando determina como “tarefas fundamentais do Estado”, além de garantir as liberdades e defender a democracia política e participativa, “promover…a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais”, “ mediante a transformação… das estruturas”. Assim estabelece o artigo 9º e, por isso, uma das quatro Partes da Constituição é dedicada à Organização económica, e um dos Títulos é sobre os direitos e deveres económicos, sociais e culturais, e outro, inteiramente dedicado aos direitos, liberdades e garantias, distingue os pessoais, os de participação política e os dos trabalhadores.
Como se assinala no texto introdutório do livro hoje apresentado, a Constituição não foi elaborada, como outras, por um grupo de peritos em círculo fechado, antes acolheu as grandes conquistas de Abril, que foram legisladas e em parte ainda permanecem, nascidas da luta popular e das necessidades objectivas do desenvolvimento.
Por isso a direita, como expressão política e doutrinária do grande capital financeiro, tudo fez, primeiro, para evitar que fosse gerada no decurso do processo revolucionário, e depois para que fosse concluída e entrasse em vigor. Nunca se conformou com a Constituição aprovada, que depreciativamente classificava de “programática”, e por isso procurou atingir os seus desígnios através de sucessivas revisões que a amputassem de determinantes essenciais.
Vejamos alguns passos, que identificam um dos fios condutores da acção da direita durante o processo revolucionário.
Logo em Julho de 74, o então Primeiro-ministro Adelino Palma Carlos, com o respaldo de Spínola e Sá Carneiro, propôs um referendo a normas constitucionais provisórias e o adiamento das eleições para Novembro de 76. A proposta não passou nem no próprio Governo nem no Conselho de Estado e foi rejeitada pelo MFA.
Na Proclamação ao País que o General Spínola não chegou a ler na sequência do falhado golpe de 11 de Março, as eleições constituintes eram anuladas e o que se realizaria, em Novembro, seria um referendo sobre projectos constitucionais elaborados pelos “Partidos autorizados”.
Um dos planos de contingência concebidos pela direita no 25 de Novembro previa a transferência para o Porto do Governo e da Assembleia Constituinte. Com essa finalidade foram enviadas para esta cidade as barras de ouro do Banco de Portugal, operação ilegal por raros autores referida mas confirmada agora pelo então Vice-governador , Emílio Rui Vilar, em entrevista ao Jornal de Notícias em 25 de Novembro último. Note-se: na ausência do Governador Silva Lopes, que estava na Alemanha. Com a mesma finalidade, foi redigido um Projecto de lei pelo então deputado Jorge Miranda, por alegada incumbência de dirigentes do PS e do PPD, em que se atribuía a plenitude dos poderes legislativos e de fiscalização, bem como de eleger o Primeiro-ministro, à Assembleia Constituinte, e eram dissolvidos o Conselho da Revolução e a Assembleia do MFA. Encontra-se reproduzido no seu livro “Da revolução à Constituição”.
O período seguinte, menos conhecido e um dos menos estudados, foi marcado pelas tentativas de demissão do Presidente da República, alvo duma infame campanha, e de impor um referendo sobre a Constituição. Foram os perigos que se iam acumulando que levaram o General Costa Gomes a decidir promulgá-la, em 2 de Abril de 76, no momento seguinte à sua aprovação pela Assembleia.
Por esta época a rede terrorista intensificava as suas acções criminosas, e é elucidativo que um dos seus próceres assumidos, o comandante Alpoim Calvão, mais tarde distinguido e agraciado pelo poder político emergente, para explicar o incremento dos atentados bombistas, tenha declarado que no 25 de Novembro tinha havido “uma clarificação militar mas não política”.
O processo conhecido por “recuperação capitalista” iniciou-se a partir de Julho de 1976, com a posse do I Governo Constitucional, mas não simultaneamente em todas as esferas da sua actividade. Foram sendo gradualmente afastados responsáveis mais vinculados às conquistas revolucionárias e substituídos por outros mais afeiçoados aos novos rumos. Assim aconteceu, por exemplo, no Ministério da Agricultura onde o seu titular, engº Lopes Cardoso, que vinha já do VI Governo Provisório, foi substituído, em 5 de Novembro de 76, por António Barreto, com quem se inicia a ofensiva contra a Reforma Agrária.
Não deixa de ter interesse anotar que, 10 dias depois do seu afastamento, a residência deste dirigente do PS viria a ser atingida por um atentado bombista.
A Constituição veio a ser submetida a 7 revisões, para as quais são necessários, como sabemos, 2/3 dos deputados eleitos, o que implica um entendimento entre os dois Partidos tradicionalmente mais votados.
Algumas destas Revisões foram particularmente gravosas e atingiram a sua matriz identitária.
A de 1989, na decorrência da adesão à Comunidade mais tarde designada por União Europeia, eliminou o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, abriu caminho à reprivatização das empresas públicas e ao seu domínio pelo capital estrangeiro, acabou com a referência à Reforma Agrária e à socialização dos meios de produção, acabou com o princípio da gratuitidade do Serviço Nacional de Saúde, que passou a ser definido como “tendencial”.
A de 92, com o objectivo de permitir a ratificação do Tratado da União Europeia sem referendo, retirou o exclusivo da emissão de moeda ao Banco de Portugal.
A de 2004, abdicou do primado da Constituição portuguesa sobre o direito comunitário.
No seu texto, sempre claro e pedagógico, o Juiz Conselheiro Guilherme da Fonseca enumera diferentes normas que foram sendo eliminadas, como a do Serviço Militar Obrigatório, ou a que estabelecia “ a descriminação positiva a favor dos filhos de trabalhadores no acesso ao ensino superior”, que constava do art.76º.
E sublinha, com clarividência, que o exercício dos direitos subjectivos públicos, gerais e universais, de que todos os cidadãos são titulares, em condições de igualdade, e revestem natureza vinculativa, este exercício “encontra-se muitas vezes mais vigiado e condicionado, indo até quase à sua eliminação, na prática”.
Tem, por isso, muito interesse na abordagem que faz sobre o acesso de todos ao direito e aos tribunais, que não pode ser denegado por insuficiência económica, como garante o art. 20º, uma das conquistas democráticas, a definição de oito pilares essenciais de um modelo de justiça.
A direita não se conforma com a Constituição que temos, apesar de todas as alterações que sofreu. Queixa-se muito da “rigidez laboral” como factor desfavorável ao investimento e, em selectos auditórios, vai reclamando nova revisão, designadamente a alteração do art.53º, que proíbe os despedimentos sem justa causa. Esperemos que o quadro político existente desde há um ano tenha estancado o longo processo que conduziu à perda de direitos, a limitações das funções sociais do Estado e a cedências de soberania.
No que respeita a outra conquista democrática, o direito que a Constituição consagra de os cidadãos informarem, se informarem e serem informados, o texto do jornalista Alfredo Maia historia, de forma exaustiva, todos os passos dados para assegurar, no campo legislativo, a liberdade de expressão e de imprensa.
A censura não teve de ser formalmente extinta, porque a liberdade de informar foi conquistada pelos jornalistas no próprio dia 25 de Abril. A Lei de Imprensa, que estabelece como direito fundamental uma informação livre e pluralista e os direitos e garantias dos próprios jornalistas, foi aprovada em pleno processo revolucionário, em Fevereiro de 1975. Representa um dos seus frutos mais perenes e primordiais e, na sua essência, foi incorporada na Constituição da República
No estudo de Alfredo Maia se descreve o debate e os projectos apresentados pelos vários Partidos, e depois as sucessivas revisões da lei constitucional que, para além de alguns pontos compreensíveis, significaram verdadeiras regressões no que respeita ao pluralismo informativo e ao escrutínio público, não acautelaram eficazmente a concentração empresarial, uma das origens da informação monolítica e manipuladora hoje dominante nos meios de Comunicação social. O texto de Alfredo Maia vai mais longe no exercício de distinguir a letra da lei e a realidade existente, e apresenta sugestões para os cidadãos dinamizarem a acção crítica. Termina com um grito de alerta, também partilhado por outro autor, o jornalista Pedro Tadeu, sobre as restrições que se pretende impôr à cobertura das campanhas eleitorais.
No texto que intitulou “10 perigos para a liberdade de informar e ser informado”, Pedro Tadeu enumera-os e fundamenta a sua análise com exemplos concretos e grande clareza. Lá figuram o medo, a mentira, o carreirismo, a falsa deontologia, as limitações abusivas, o afastamento dos cidadãos, o fim da vida privada, o segredo de justiça, a desvalorização do debate político justo, terminando com um apelo que, como caminho alternativo, responsabiliza os jornais e os jornalistas: “reforçar o seu compromisso com a verdade, ou, aliás, das várias verdades que uma mesma realidade comporta”.
Outra reflexão, também brilhantemente exposta, foi escrita pelo docente e investigador Rui Pereira.
Nela se procede a uma sistematização das directrizes do Estado Novo para os serviços da Censura, e os interditos que condicionam a informação hoje. Ontem se proibia tudo o que pudesse comprometer a “unidade moral e espiritual da Nação”. Hoje os interditos permanecem, num outro tempo e de um outro modo. Num quadro em que a parte do trabalho no rendimento nacional era, em 1975, de 59%, e em 1985 já tinha descido para cerca de 36%, mais fácil é compreender que” os interditos permanecem, cuidadosamente evitados por aqueles que estariam habilitados a testemunhá-los e com igual prudência ignorados, de facto ou voluntariamente, por aqueles que precisariam de conhecê-los”.
Esta reflexão de Rui Pereira talvez nos possa conduzir a um outro ponto: o Regime pode ser menos ou mais democrático, mas o sistema é o capitalista, que acolhe e protege os interesses das classes dominantes, por norma egoístas, predadores e tendencialmente hegemónicos. Uma contradição que pode ser esbatida ou atenuada mas que é insanável.
Não foi por espírito de época ou qualquer pressão sectorial, que a Constituição estabelece, no art.65º, que “todos têm direito, para si e sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.
A falta de habitação decente e a carência deste bem social básico irromperam pelas ruas libertas pela Revolução de Abril. Quem assistiu à imensa manifestação de 17 de Maio de 75, promovida pelas comissões de moradores, que inundou a Avenida dos Aliados e ruas adjacentes, no Porto, não esquece. “Casas, sim/barracas não”, “Casas sim, fascismo nunca mais”, era um clamor de revolta e indignação que se erguia da multidão, de famílias inteiras, vindas lá das periferias operárias, a pé ou em camionetas de caixa aberta, ou do imo da cidade, de casas húmidas e escuras, onde crescia o bolor e o desespero. Em alguns locais a situação era insuportável.
No seu texto, o arquitecto professor António Madureira, que participou no Comissariado para a Renovação Urbana da Área Ribeira-Barredo (CRUARB), criado pelo II Governo Provisório, depois de descrever o processo histórico de densificação demográfica ali ocorrido, refere que chegou a registar-se mais de duas mil pessoas por hectare, quando se considera como norma urbanística máxima e já perigosa, trezentos habitantes por hectare. Metade das casas só tinha uma cama, onde dormia toda a família. Os sub-alugas eram prática corrente e até uma célebre Rosa Padeira alugava degraus de escada. Apesar de todos os boicotes, e sempre em diálogo com as Comissões de Moradores, o Comissariado procedeu a diversas construções, em curtíssimo tempo, e segundo directrizes que, por exemplo, recomendavam evitar demolições. A ideia que pontificava não era desalojar pessoas para as substituir por outras com mais posses, como acontece hoje com frequência na reabilitação dos Centros Históricos.
Outro autor, o coronel engenheiro, e autarca durante muitos anos, Baptista Alves, foi Director nacional do Serviço Ambulatório de Apoio Local ( SAAL) a partir de Julho de 75. No seu texto, Baptista Alves descreve a situação herdada do fascismo: havia um défice de 600 mil alojamentos, mais de metade das habitações não possuía energia eléctrica e abastecimento de água, 60% não era servidas pela rede de saneamento.
Foram tomadas medidas de emergência pelos Governos Provisórios, sobretudo pelos presididos por Vasco Gonçalves, através da promoção directa, de Contratos de Desenvolvimento, do apoio às Cooperativas e do SAAL.
Várias urbanizações foram construídas pelo SAAL, só no Porto foram 4. Representaram um importante exercício de participação democrática das populações organizadas em comissões e associações de moradores.
O balanço efectuado em final de 76 é concludente: famílias envolvidas – 41665; fogos iniciados até 31/10/76 – 2259, a iniciar até 31/12/76 – 3125; total em projecto – 19359.
Não pode deixar de se referir que as instalações no Porto, na rua Gonçalo Cristóvão, do CRUARB e do SAAL, foram destruídas por um atentado bombista, em 14 de Janeiro de 1976.
É o momento de dizer que apesar de todas as convulsões, da violência da rede terrorista, da cruzada contra-revolucionária, do acumular de tensões, das chantagens e ameaças vindas do exterior, a Revolução seguiu o seu curso: importantes conquistas laborais foram alcançadas, a economia continuou a funcionar apesar de todos os boicotes e da fuga de capitais, os trabalhadores e o Estado asseguraram a sobrevivência das empresas sabotadas, a Banca e os sectores estratégicos foram nacionalizados com um amplo consenso, criaram-se as condições de acesso generalizado à Saúde, à Educação, à Justiça, à Segurança Social, à Cultura, a uma habitação digna, instituiu-se o salário mínimo, realizou-se a Reforma Agrária, criaram-se melhores condições para a exploração agrícola, instituiu-se o Controlo Operário, expandiu-se o movimento associativo e sindical, lançaram-se os alicerces do Poder Local Democrático, as condições de vida melhoraram, diminuíram as desigualdades, criou-se mais emprego e emprego com direitos.
Apesar de todas as convulsões, dos atentados bombistas, das agressões, dos assaltos contra sedes dos Partidos de esquerda e dos Sindicatos, de todas as divisões no corpo social e na estrutura militar, a Constituição foi sendo escrita, e os seus artigos aprovados por largas maiorias.
As lutas desenvolvidas pelas classes trabalhadoras tiveram um papel determinante.
O texto do dirigente sindical Manuel Freitas constitui um valioso testemunho.
Através da sua experiência vivida, descreve as condições de trabalho numa grande empresa fabril do norte antes do 25 de Abril, os horários longos de 48 horas, os salários reduzidos e discriminatórios, sobretudo para as mulheres e os jovens, a teia repressiva, a bufaria ao serviço da PIDE e do patronato, o severo regime disciplinar, a inexistência de 13º mês, do subsídio de desemprego e de acesso à Segurança Social.
O autor evoca a perseguição aos que tentavam pôr o sindicato ao serviço dos trabalhadores, as manobras do patronato e do governo e as lutas desenvolvidas. Já depois do 25 de Abril conta-nos como foi a greve rotativa de 11 dias, com ocupação da sede patronal, e que terminou numa grande vitória, com a satisfação das principais reivindicações, o que teve uma grande repercussão no movimento operário. Conta-nos como foram os ataques ao movimento sindical e as provocações dos grupos pseudo-revolucionários.
Deixo para o fim uma referência ao texto do Coronel Castro Carneiro, que foi um dos capitães do MFA no Porto. É um texto luminoso, escrito com rigor e serenidade, por quem viveu intensamente, com espírito de missão, firmeza e coragem, acontecimentos decisivos para a libertação do nosso País.
Nele se descrevem as acções militares do 25 de Abril no norte, as surpresas, as incertezas e as hesitações dalguns, o modo eficaz como enfrentaram as dificuldades e as superaram, e esse momento único, histórico, de encontro dos militares com o povo do Porto, que tinha sofrido nesse mesmo dia, uma inusitada carga policial na avenida dos Aliados. A imensa alegria feita de confiança e fraternidade num inesquecível fim de tarde, e que se repetiria dias depois no primeiro 1º de Maio em liberdade.
Um texto em que se refere a luta dos militares contra as redes terroristas do ELP e congéneres, e a torpe conspiração que levou ao afastamento do brigadeiro Corvacho do Comando da Região Militar Norte.
As últimas linhas ressumam um certo desencanto, bem compreensível.
Mas lembremos: quando terminou o período revolucionário, há 40 anos, tínhamos uma das Constituições mais avançadas, justas e progressistas de todo o mundo; tínhamos uma economia a funcionar e uma taxa de desemprego de 4%; foram acolhidos e integrados mais de meio milhão de portugueses vindos das colónias africanas; muitos emigrantes regressaram e reconstituiram as suas vidas; o poder financeiro estava subordinado ao poder político; a paz, apesar dos seus elevados custos, tinha voltado; Portugal já não estava só mas orgulhosamente solidário com outros países e povos.
Sabemos o que aconteceu depois.
Uma síntese do processo revolucionário poderá ser esta: a Revolução portuguesa foi tão longe quanto possível na construção de uma democracia a caminho do socialismo, a contra-revolução foi tão longe quanto possível nos labirintos de Novembro e no tempo seguinte.