Intervenção na “Voz do Operário”/25Fev2012Em nome da Associação Conquistas da Revolução agradecemos o convite que nos formularam, associando-nos, não só, às comemorações dos 129 anos desta prestigiada Instituição -A VOZ DO OPERÁRIO- como particularmente à homenagem que é intenção prestar ao nosso querido companheiro de luta e camarada Coronel João Varela Gomes.
Em primeiro lugar queiram os representantes, associados e amigos presentes, receber da neófita Associação Conquistas da Revolução, os nossos mais calorosos parabéns e desejo de que a Voz do Operário continue a manter-se, por muitos e longos anos, firme, activa e jovem no cumprimento dos seus objectivos sociais, culturais e humanitários.
É “preciso tempo para nos tornarmos jovens”, alguém disse. Pois apesar da idade esta instituição continua viçosa.
Em segundo lugar,falar do homenageado, Coronel João Varela Gomes, - o que muito nos honra – será, pelo limite de tempo que temos, omitir, certamente, aspectos não menos relevantes da sua longa vida de acção e luta; disso nos penitenciaremos. É justo dizê-lo porque o conhecemos bem, que independentemente das fortes razões que justificam aqui a sua ausência, ele é alérgico, a estes actos, quando está em causa a sua pessoa.
Mas a história é feita de personagens. E estas pertencem a um universo que ultrapassa a sua individualidade. Os cidadãos de carácter, os tenazes lutadores de espinha dorsal, combatentes da liberdade, pertencem a todos nós, a todos os que queiramos tê-los como referência e exemplo. Por isso estarão sempre presentes com as suas imorredouras e singulares marcas, de vida de acção e combate.
É o caso do Coronel João Varela Gomes e também, porque seria grave não o mencionar, o de Maria Eugénia,sua companheira e aliada: nas batalhas que ambos travaram, na dor e sofrimento, durante tantos anos, na incansável e indestrutível missão, de contribuir :
- para a libertação do Portugal da ditadura fascista,
- para a dignificação das suas gentes agrilhoadas,
- e para o combate aos ímpetos retrógrados e saudosistas.
À ditadura fascista o casal Varela Gomes (mesmo com quatro filhos menores) fez uma guerra sem tréguas antes do 25 de Abril. E já depois, desta gloriosa data, à burguesia restauracionista e contra-revolucionária, João Varela Gomes não deixou de reagir com denodo e firmeza. Por isso, se em ditadura, foram presos, torturados, espancados e perseguidos, até já, em democracia formal, chegaram à condição de exilados.Quais os “crimes”?
-Antes, pela queda do regime opressor.
-Depois, pela defesa das conquistas de Abril, das conquistas da revolução.
-Sempre, por uma liberdade democrática, do povo e para o povo.
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Mas vamos aos factos mais salientes.
Depois de terem trabalhado afincadamente na candidatura de Humberto Delgado em 1958, João Varela Gomes e Maria Eugénia (esta, fazendo a ligação entre militares e civis) estiveram profundamente ligados à conspiração da Sé em 1959.
Precedendo, os acontecimentos de Beja, em 1961, o então Capitão Varela Gomes e outros oposicionistas, promovem uma candidatura para deputados à então Assembleia Nacional.Pela forma hábil,como fez o pedido,V.G. foi curiosamente autorizada pelo seu ministro que era, então, o ditador. Ficou célebre,entre os empolgantes comícios realizados no distrito de Lisboa, o comício realizado no Teatro da Trindade, onde com toda a sua coragem e frontalidade incentivou os presentes à revolta, levando-os ao rubro. No entanto terminada a campanha os candidatos decidiram, por maioria, desistir e não ir às urnas.
Surge, então, no final desse ano, o acontecimento mais marcante da sua vida.
João Varela Gomes foi o comandante militar no histórico assalto ao quartel de Beja, na noite de passagem para o ano de 1962.Foi ferido gravemente e a acção revolucionária não teve êxito. Esteve, entre a vida e a morte, nos primeiros tempos. Só seria julgado em 1964, não em Tribunal Militar, mas no “tristemente célebre Plenário”, Tribunal da Boa Hora ( primeiro caso na história da instituição militar). No seu julgamento, faz um depoimento (previamente decorado) que só por si o define como um homem de invulgar integridade e de amor à sua causa.Contra a vontade do seu advogado,como disse Maria Eugénia em entrevista: «ele foi para tribunal instigar que outros fizessem o que eles tinham feito. Instigar à revolta. E falou de Salazar de uma maneira que nem queiram saber…foi uma coisa de arromba!» Condenado a seis anos de prisão maior, quiseram lhe impor a lei especial, de contar por metade o tempo de reclusão anterior/preventiva. Face aos apelos e perante a visita do Papa, em 1967,acabaria por ser alterada esta disposição.A sentença é cumprida: três anos, entre a Penitenciária e o Aljube (em Lisboa) - sempre isolado, sempre vigiado - e os restantes três no Forte de Peniche. Nesse julgamento, a seu lado, como ré, esteve também Maria Eugénia, condenada a 18 meses, que já cumprira, na prisão de Caxias, onde,instigada a denunciar, resistiu estóicamente: à tortura de sono, na sede da PIDE,e de imediato a três meses de isolamento, na referida prisão.Nunca falou.
João Varela Gomes, no forte de Peniche, onde esteve três anos, diz ter recebido dos seus companheiros de prisão, quase todos, altos responsáveis do Partido Comunista, o melhor acolhimento - não tendo nunca sido,nem ele ,nem sua mulher, militantes ou filiados no PCP -,correspondeu, a esse acolhimento e trato, com uma profunda admiração e enorme respeito por eles. Sempre os viu como homens sérios,cultos e empenhados na mesma luta e a padecer por ideais.Saiu de Peniche em 1968,recebido pelos seus - mulher e filhos – no amanhecer dum dia especial. Diz Maria Eugénia que lhe viu “verter algumas lágrimas de comoção. Não era possível sair dali, dignamente, deixando atrás de nós tanta gente a penar em condições duríssimas.”
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Iniciam nova fase.Com quatro filhos menores. Tiveram a solidariedade de muitos e as dificuldades inerentes. João Varela Gomes, nunca deixara de ser militar em tempo algum, adaptou-se mal aos trabalhos que conseguiu, em regime precário, quer em publicidade, quer numa metalúrgica, quer noutra áreas e finalmente numa pequena editora. Mas era preciso manter uma família, não pequena. Maria Eugénia trabalhou na Seara Nova e, a partir de 1971, no Sindicato dos Seguros, com magras remunerações. Proibido de actividade política, vê Maria Eugénia encarregar-se dessa acção. Foi activista desde 1963 na Frente Patriótica de Libertação Nacional e em 1968 cria, com várias personalidades da oposição, a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. A sua acção foi sempre de enorme empenhamento e elevado dinamismo. Tendo ainda participado na campanha eleitoral da CDE em 1969,é presa pela PIDE durante uma semana, apenas por estar à procura dos filhos numa manifestação.
Para terminar esta fase “pré-25 de Abril”, durante o ano de 1973 J.V.Gomes e Maria Eugénia vêem os seus filhos ser presos pela PIDE: o Paulo, com 20 anos, por um mês, por causa do 1º de Maio, as filhas de 16 e 17 anos, durante uma semana, além de uma delas (a mais nova) com a mãe serem espancadas pela polícia de choque, num comício de campanha eleitoral na S.N.B.A.
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A saga de todo o cidadão - como João Varela Gomes - feito de frontalidade e empenho na acção, de coragem, de honestidade intelectual e de dignidade de carácter…de não quebrar, nem torcer -não fica por aqui.
Chegados ao 25 de Abril de 1974 João Varela Gomes é reintegrado, no Exército, com posto de Coronel. Também aquilo que tinha proclamado em julgamento (a incitação à revolta) fora ouvido pelos capitães. Também fizeram parte da sua aprendizagem, enquanto capitães de Abril, as lutas antifascistas.
Foi então criada em Junho, na Chefia do Estado Maio General das FFAAs, a 5ª Divisão, com o fim imediato de integrar os sete oficiais que constituíam a 1ª Comissão Coordenadora do Programa do MFA. Vasco Gonçalves foi o seu primeiro chefe por apenas um mês, porque toma conta do II Governo Provisório a 18 de Julho. Dentro do ENGFA o Coronel Varela Gomes transitara para esta nova 5ª Divisão. Como oficial de maior patente é Varela Gomes que assume, entre Julho e Outubro “oficiosamente” o lugar de chefe desta Divisão, seguindo-se lhe o Coronel Robin de Andrade e, mais tarde, o Comandante Ramiro Correia, que desde Outubro de 1974, já na 5ª Divisão, coordenava e impulsionava as Campanhas de Dinamização Cultural.
Nos seus 14 meses de permanência, nesta estrutura,Varela Gomes, tem particular relevância, não só no período em que está à frente da 5ª Divisão, na organização e coordenação dos seus diversos sectores, como depois,segunda figura hierárquica,vincando com a sua acção a marca do militar “intransigente na defesa dos ideais de Abril e na defesa da Revolução”. Somos testemunhas vivas ,aqui presentes,o Comandante Manuel Begonha e eu próprio, dessa sua pujança e dinamismo. Lá esteve, sempre no seu “posto de missão”. E quando necessário, nos momentos mais delicados do período revolucionário, a sua intervenção e a da 5ª Divisão revelaram-se essenciais, em defesa de Abril e contra os seus inimigos.Aconteceu no 28 de Setembro, no 11 de Março e no chamado Verão Quente…ou, mesmo ainda, no próprio, 25 de Novembro! Mas convirá ouvir o que ,de seu próprio punho, João Varela Gomes escreveu no preâmbulo do Livro Branco da 5ª Divisão, editado em 1984:
“…a 5ª Divisão foi um autêntico órgão revolucionário. …O mérito que porventura houve foi o de, observando o fluir do movimento popular, tentar assegurá-lo, defendê-lo, integrá-lo ao nível do poder militar.”
“…militares de carreira ou em serviço temporário; sargentos, soldados e marinheiros; funcionários civis; trabalhadores voluntários; intelectuais e artistas; dedicações sem número; foram centenas, mais de mil, quantos fizeram a 5ªDivisão e contribuíram para lhe moldar a sua singular feição revolucionária… resoluta, como marcha para o combate ...”
“ …em igual medida, as centrais de desestabilização imperialistas nos distinguiram como alvo a destruir. Prioritário. O mais perigoso. Essa distinção a assumimos. Como título de honra. De tão elevada quota no quadro dos valores revolucionários que, em sincera modéstia, a achamos imerecida.”
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Sabemos como as Revoluções - povo na rua e trabalhadores participativos, com a esperança renascida num melhor futuro, empenhados e mais felizes - são insuportáveis e intoleráveis para a burguesia e suas elites acomodadas, sedentas de poder que logo se apressam a considerá-las – como a bagunça na rua, a populaça efusiva, o desvario…mas muito (sobretudo) os seus haveres e privilégios em risco.
Os nossos 19 meses de período revolucionário, tão caluniado pelos seus inimigos, são um dos tempos mais belos e ricos da nossa história. É Varela Gomes quem o escreve “a gloriosa Revolução dos Cravos … é nossa, é de esquerda, é do povo trabalhador, das pessoas decentes, honestas, cultas. Luta por um melhor futuro para os desfavorecidos, por nascimento ou condição social.Não tem quaisquer afinidades com as minorias exploradoras, nem com os desfrutadores de privilégios abusivos, nem com fascistas ou filofascistas.”…” Mas não deixa de ser curioso que até uma «troika», no final de 1975, tenha lavrado um relatório (agora perdido!?) declarando o estado de boa saúde económico/ financeira de Portugal.
Paradoxalmente, ou não, esse período contém em si toda a dialéctica reaccionária de contra-revolução. João V.Gomes apercebeu-se disso muito cedo e daí o seu combate e tentativa de evitar que esta singrasse. Infelizmente a contra-revolução venceu. Terá começado, tímida, travestida. Hoje, e há muito tempo, já se passeia engalanada e arrogante.
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Por isso, a saga do nosso homenageado continua.
É sujeito a um mandato de captura,para se entregar, emitido pelos vencedores do 25 de Novembro, na qual se apela à própria população para denunciar o coronel Varela Gomes e outros militares. Porque que crime?
O crime, esse, fizeram-no os fautores do Novembro da nossa Primavera. Feito com planeamento e ordens de missão contra a Revolução. Não foi um golpe contra um golpe, como lhes soa bem, justificar. Foi um golpe contra a Revolução concretizado pelos que, tendo efectivamente traído Abril se deixaram seduzir, com maior ou menos grau de percepção, pelo aparente sossego duma ilusória tranquilidade de um regime democrático doente, em que o povo já não é quem mais ordena.
De acordo com os ditames da sua consciência, Varela Gomes e outros militares, não tinham motivos para se entregarem a novos verdugos.
Começa uma nova etapa na vida deste lutador (novamente acompanhado de Maria Eugénia): a de exilado político. Foi assim durante quatro anos, primeiro em Angola, onde, ainda teve a desventura de assistir à injusta prisão do saudoso e inocente, camarada e companheiro, Costa Martins. Depois em Moçambique, onde, para maior desgosto viveu, também, a trágica morte (por acidente) do não menos saudoso, camarada e companheiro, Ramiro Correia, com sua mulher e um dos filhos.
Regressou a Portugal em 1979.Nunca foi julgado, não obstante ter-lhe sido aplicada (a si e outros militares) a pena, administrativa e ilegal, de passagem ao quadro de complemento (a miliciano?!). O Tribunal Superior Administrativo ainda funcionou para anular semelhante aberração. Foi integrado, não sem peripécias grotescas, em 1982, como Coronel mas Reformado!
Tem nos últimos trinta anos dedicado o seu tempo a uma das suas, outra forma de contenda, publicando livros e artigos, divulgando, esclarecendo, desmascarando, vincando sempre as suas imorredouras características de cáustico, mas tenaz e sério, combatente da liberdade.
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Fomos mais longe do que nos tínhamos comprometido.
Exigência da personagem do homenageado. Exigência dos tempos actuais. Efectivamente a contra-revolução, de braço dado com o sistema neo-liberal global, entrou no nosso processo como um vírus, tem-se instalado no propósito de destruir as nossas conquistas de Abril, as nossas conquistas da Revolução…De tal sorte, passados 35 anos, estaremos estupefactos. Como foi possível ???
Obrigado João Varela Gomes pelo exemplo,mais um, que só pode revigorar a nossa coragem em prosseguir a Luta. A luta em que hoje, os trabalhadores, a juventude, os homens e mulheres de Abril, vão continuar a travar contra os que pretendem restaurar um caduco e tenebroso passado.
NÃO,tal como Varela Gomes sempre lhes disse.
Nós diremos também : NÃO PASSARÃO.
25 de Abril Sempre!
Manuel Duran Clemente
Director da Associação Conquistas da Revolução