A banalização da violência
Marques Pinto | Vogal da Direcção
Recordo, as palavras e observações que meu pai tantas vezes proferia
acerca da violência que se observava em fotografias em alguns artigos da
imprensa a que se ia tendo acesso, sobretudo imagens obtidas na 2ª
Grande Guerra, na Guerra da Coreia e dos conflitos na Indochina e na
Argélia onde ainda se lutava pela Independência.
Tenho de esclarecer que hoje sou já octogenário e lamentavelmente fiquei
órfão de pai nos anos sessenta do seculo passado e não era frequente ter
acesso a imagens de reportagens pela televisão, que na altura em Portugal
nos brindava com um único canal de total controlo estatal e de curta
duração nas últimas horas do dia.
Mas retomando o assunto da violência e do seu impacto nas populações
queria acrescentar que na altura, meu Pai que tinha vivido em criança
todo o período da 1ª Guerra Mundial e já adulto acompanhara a 2ª Guerra
Mundial, em que as publicações produzidas e distribuídas por ambos os
lados eram profusamente espalhadas nas grandes cidades e das quais
ainda recordo quando comecei a ler, as muitas e variadas reportagens em
que cada um dos lados mostrava os estragos provocados nas cidades do
inimigo.
Contudo nunca esquecerei as críticas que meu pai fazia sobre a violência e
sofrimento que as populações civis eram obrigadas a suportar, o que para
ele como médico de profissão era a preocupação principal, pois recordo
sempre as suas palavras – “os soldados morrem ou ficam muito feridos e
incapacitados, mas quando acaba o confronto, todos, quer civis quer
militares, dum lado e doutro precisam de casa para se abrigarem e agora
vangloriam-se de estarem a destruir o tecto dos outros”
Passado pouco tempo também fui observador local noutro tipo de guerra
e de como algumas chefias militares enumeravam nos seus relatórios “ a
destruição de residências, abrigos e dos meios de subsistência” das
populações que abrigavam - e quantas vezes forçadas – os guerrilheiros
que lutavam pela Independência nas guerras no Ultramar .
Mas o que hoje verificamos na televisão – qualquer que seja o canal que
se procure – é a constante passagem muitas vezes repetida até á exaustão
de cenas de bombardeamento, destruição de pessoas e bens -muitas
vezes com imagens chocantes de homens mulheres e crianças mortas ou
mutiladas, ou em fuga de zonas de conflito ou mesmo de
bombardeamento real.
Percebi e compreendi há dias através dum artigo elaborado por um
professor que aquilo que nos choca e deixa horrorizados e preocupados
durante uns dias dentro de pouco tempo tornou-se quase numa
banalidade e a sensação de repugnância por tais factos de violência
começam a ser cada vez mais tolerados no nosso espírito, sendo essa a
razão pela qual tanta insistência se pratica.
Claro que ao fim de algum tempo as criticas vão sendo menores, a
motivação para as manifestações publicas de repudio vão diminuindo em
intensidade e aderentes e até nos poderes políticos se vão esbatendo as
referencias a tais atrocidades qua tanto chocavam há umas semanas atrás.
È por esse motivo que a imprensa internacional superiormente dirigida e
subsidiada nos inunda permanentemente e profusamente com relatos
fotográficos e filmagens de cenas de devastação – quer seja na Ucrânia,
quer seja agora em Gaza - e começamos a ver que o grande publico cada
vez encara com menos sensação de horror e pena pelo sofrimento
daquelas dezenas de milhares de adultos e crianças que vemos na busca
de abrigo e alimento expulsos das suas casas e que nunca mais as verão
pois passaram a ser escombros e ruinas.
A memória é curta e principalmente quando tudo se vai passando muito a
Leste deste cantinho onde se vão criando outros “fait-divers” e o
sofrimento de tantos milhões vai perdendo importância mas nossas
mentes...e tudo se vai banalizando.