Intervenção de Modesto Navarro



Intervenção de Modesto Navarro no Debate - 35 Anos da Constituição da República. Acção e papel dos Governos de Vasco Gonçalves

A ALIANÇA POVO-MFA E SUAS CONQUISTAS NA REVOLUÇÃO DO 25 DE ABRIL

Caras e caros amigos

Com esta iniciativa da Associação Conquistas da Revolução, queremos manter e repor os ideais do 25 de Abril e as conquistas iniciadas em 1974 e 1975. Anos fundamentais na construção de uma democracia política, económica, social e cultural, objectivos que hoje continuam a estar na ordem do dia da luta dos trabalhadores e do povo português.

Queremos lembrar, desde logo, a intervenção popular e dos trabalhadores na transformação de um golpe militar numa revolução. A participação organizada, a alegria da vitória no dia 25 de Abril e a histórica manifestação do 1º de Maio de 1974, ficaram a marcar e a impulsionar a construção das liberdades fundamentais, o exercício pleno da vida política e da intervenção decisiva dos que lutavam contra o fascismo na clandestinidade e na resistência quotidiana dos trabalhadores e do povo.

Em 1974, milhares de estudantes e jovens trabalhadores estiveram em todo o país, na intervenção cívica, social e cultural, nas campanhas de alfabetização e na organização de acções de esclarecimento e de apoio à revolução do 25 de Abril.

Nesta sessão, queremos homenagear e projectar a figura e o exemplo fundamental do General Vasco Gonçalves, grande revolucionário e militar de Abril, o melhor primeiro-ministro de sempre dos trabalhadores e do povo português.

O programa de dinamização cultural do MFA foi apresentado 6 meses após o 25 de Abril, na vigência do III governo provisório. O 1º Ministro Vasco Gonçalves disse, então, que um dos principais objectivos “era levar os militares, o Movimento das Forças Armadas, às populações, e apoiá-las na tomada de consciência dos problemas que elas tinham”.

As campanhas também influenciaram a democratização das forças armadas. Era uma aprendizagem das populações e dos militares, na aliança Povo-MFA que então foi construída.

Com insuficiência de meios humanos e técnicos, mas com a adesão das populações, forças democráticas e associações locais, realizou-se um intenso trabalho de apoio social e cultural, de organização popular, de intervenção na abertura de estradas, de electrificações de aldeias, de colocação de médicos e enfermeiros em zonas até aí com grandes dificuldades.

Muitas populações de vilas e aldeias tiveram pela primeira vez acesso a consultas especializadas. Creches e jardins-de-infância foram criados, dirigidos por comissões locais, com o apoio do MFA.

Companhias de teatro realizaram digressões por muitas zonas do país, espectáculos de música, cinema e outros passaram a fazer parte dessas acções de desenvolvimento cívico, cultural e associativo. Na Comissão Dinamizadora Central havia equipas de técnicos e de animadores que criavam condições para essas iniciativas no terreno. Escritores, artistas e outros intelectuais aderiam às campanhas e participavam nas iniciativas com os militares e civis.

Na Serra de Montemuro, por exemplo, na aldeia da Gralheira, Concelho de Castro Daire, finalmente foi aberto um estradão para poderem levar os doentes para o hospital de Castro Daire. Até aí, iam em padiola, aos ombros de gente da terra, até à estrada, que ficava bem longe.

Em diversas regiões do país, as populações organizaram-se em comissões de moradores e de trabalhadores, em associações cívicas, culturais e desportivas.

A eleição e instalação de comissões administrativas para as câmaras municipais e juntas de freguesia, logo depois do 25 de Abril, deram início à democratização e transformação do poder local, que era autocrático e controlado pelo fascismo, pelos senhores da ANP – União Nacional. Abriram-se assim novos caminhos de afirmação das populações locais e de realização de velhas e novas aspirações dos concelhos e das freguesias.

Por exemplo no distrito de Viseu, em Sernancelhe, Penedono, São Pedro do Sul e Castro Daire, em concelhos difíceis, os militares avançavam para novas formas de apoio aos agricultores, na criação de melhores condições de produção. Veterinários, engenheiros e outros quadros especializados faziam o seu trabalho ao lado dos militares e das populações.

Os partidos políticos organizaram-se pelo país, bem como os sindicatos. As liberdades de expressão e de reunião faziam o seu caminho de abertura a novas práticas de intervenção e de democracia.

Aconteceu a nacionalização da banca e dos seguros, de sectores fundamentais e de empresas, com o controlo operário a crescer e a afirmar-se, ao mesmo tempo que, finda a guerra colonial, se caminhava decisivamente para a independência das ex-colónias. Iniciou-se a reforma agrária, que foi uma grande conquista de Abril e que hoje volta a estar na ordem do dia.

Na Constituição da República, aprovada em 2 de Abril de 1976, ficaram plasmadas tantas e tantas experiências adquiridas no terreno da vida e da luta dos trabalhadores e do povo. Ainda hoje perduram conquistas do 25 de Abril e há necessidade de confrontar a realidade actual e de prosseguirmos na afirmação dessas conquistas, hoje fundamentais para a saída da crise e para a independência nacional.

Depois do 25 de Novembro, e durante muitos anos, em tantos casos até hoje, ficaram raízes e conquistas de Abril, no poder local democrático, na vida associativa, cultural e desportiva, na luta de todos os dias, pelos direitos a uma vida digna, interventiva e transformadora.

A descentralização cultural; as redes de grandes associações e centros culturais; o teatro, a música, as diferentes áreas de intervenção e de desenvolvimento das identidades e culturas; o património cultural e suas associações; as bandas e escolas de música; as escolas e as mudanças positivas na educação e no ensino; as creches e jardins-de-infância; as dinâmicas de trabalho e de resistência que ficaram nas regiões mais desfavorecidas, a afirmar e a defender a revolução do 25 de Abril e os ideais que Vasco Gonçalves e outros militares e civis projectaram na vida de todos nós, devem ser hoje motivo de análise e de prosseguimento do nosso trabalho, na realidade difícil e desafiadora com que somos confrontados.

Daí a justeza da nossa associação, do debate entre nós e com os que defendem e querem o 25 de Abril, na conquista dos direitos fundamentais, na mudança e transformação do nosso país.

Notas da intervenção de Sérgio Ribeiro



Notas da intervenção de Sérgio Ribeiro no Debate - 35 Anos da Constituição da República. Acção e papel dos Governos de Vasco Gonçalves

1. Foi pouco mais de um ano. Foram cerca de 14 meses. Entre 18 de Julho de 1974 e 11 de Setembro de 1975. Precisamente 415 dias! (escreveu Armando Castro).
«… desde o congelamento das rendas urbanas e a nacionalização dos bancos emissores, a que procedeu o II Governo, e a lei de arrendamento rural, obra do III, até às nacionalizações dos sectores-chave e das empresas monopolistas, decretadas quase todas pelo IV Governo, e algumas pelo V, à reforma agrária do IV Governo, e à Lei do controlo operário, aprovado pelo V, mas que não chegou a ser promulgada…» (lembrou o prof. Teixeira Ribeiro).
Foram 415 dias.
E o antes e o depois desses 415 dias.
Mas foi nesses 415 dias que houve Povo-MFA, que houve "um homem na revolução". Vasco Gonçalves e cada um de nós que quis ser Povo e Futuro.

2. O “antes próximo” que vai de 25 de Abril de 1974 a 18 de Julho. Foi um tempo de expectativa, de hesitação, de encruzilhada, de “medir forças”.

3. Foi o tempo que se seguiu logo à “herança” de um país fechado e atrasado economicamente, com três características positivas (se me permitem dizer assim… como economista).
(i) um crescimento económico significativo desde o início dos anos 60, com a entrada para a EFTA, um começo de industrialização, a emigração que forçou a abertura de portas e a guerra colonial,
(ii) uma situação financeira (apesar de tudo) equilibrada, formando uma espécie de “almofada”,
(iii) uma estrutura capitalista de monopólios “nacionais” (7 grandes grupos), com escassa penetração do capital financeiro externo.

4. O que, de imediato, parecia derrotado ou irrecuperavelmente derrubado:
i) a situação de guerra colonial,
ii) esse “capitalismo doméstico”, que o poder político, na sua relação de forças, poderia controlar.

5. A “herança” má ou péssima:
i) de fora – a crise do capitalismo (o petróleo, a inconvertibilidade do dólar)
ii) de dentro – o estancar do “escape” da emigração (1,5 milhões de activos em menos de década e meia), a desmobilização militar, o retorno das colónias a acederem à independência.

5.1. À fortíssima pressão demográfica juntou-se
i) a fuga de capitais,
ii) o abandono de empresas,
iii) a sabotagem,
iv) o boicote até ao terrorismo.

5.2. O papel de Spínola nesse período e até 11 de Março de 1975, ligado ao capital (Siderurgia e Champalimaud – o MDES), empurrando numa direcção da encruzilhada e procurando impedir, por todos os meios, o caminhar em outra direcção.

6. A luta de classes – a “surpresa” do despertar das massas e da sua força – da resistência ao caminho novo.

7. Os dois níveis da política e da luta e a sua articulação:
i) de massas
ii) institucional.

8. A aliança Povo-MFA, com Vasco Gonçalves a ser a imagem da “ponte”/abraço – o cartoon de João Abel Manta.

9. 0 II Governo Provisório, os passos no caminho do avanço da democracia apoiados na dinâmica das massas e na aliança Povo-MFA contra a alternativa da contra-revolução recuperando a via capitalista nas novas condições.

10. Os III, IV e V Governos Provisórios e as respostas sempre avançando.

11. A falta de um plano para a economia que tinha, necessariamente, de ser planificada e com grande intervenção do Estado.

12. O Plano Melo Antunes (também Vitor Constância) no III, com demora e como travão, o Plano de medidas económicas de transição no IV, aprovado dentro dos Conselhos de Ministros e sabotado no exterior. A hipocrisia e as “ajudas” externas.

13. O V como governo de “aguentar” e avançar o possível institucionalmente, enquanto se clarificava a(s) relação(ões) de forças.

14. Do II ao V, 415 dias! Vasco Gonçalves, o homem a abater!

15. Depois, a dinâmica de massas não parou com o 25 de Novembro. A “embalagem” era grande…

16. Dois casos.

16.1. Constituição da República Portuguesa. A pressão das massas, Uma Constituição já (bem!) caracterizada, e acrescento que aprovada por uma Constituinte de 250 deputados dos quais apenas 30 eram do PCP. Referir o artigo 107º que estabelecia um limite para o rendimento pessoal máximo disponível, a fixar anualmente por lei, logo apagado na revisão de 1982… com a “ajuda” do FMI e da “Europa connosco”.

16.2. Creio que fui o último Director-Geral a ser nomeado por Vasco Gonçalves (do D-G do Emprego, em Agosto de 1975), vinha de chefe de delegação às Conferências Internacionais do Trabalho de 1974 e 75, fui à Conferência Mundial do Emprego de 1976, e sei ter provocado surpresa em Genève por ter resistido, como D-G do Emprego ao 25 de Novembro.

16.2.1 Negociou-se, então, um Plano de Médio Prazo para 1976-80 – o plano que faltava no caminho revolucionário e no quadro constitucional –, integrado em estratégia do Programa Mundial do Emprego, da OIT, e que foi elaborado por uma equipa multinacional de grande valia técnica – Plano “Manuela Silva”, de emprego e necessidades essenciais, com forte componente regional – aprovado em Conselho de Ministros (do 1º Governo Constitucional!) mas não levado à Assembleia da República, preterido pela célebre Lei Barreto, a da contra-reforma agrária.

16.2.2 Reforma agrária que, aliás, também poderia demonstrar como a dinâmica de massas de prolongou para além do 25 de Novembro e da derrota no nível institucional.

17. Terminaria com duas citações:

17.1. Uma, de Mário Murteira, de que relevo a sua actualidade:
Em termos de elementar bom senso é intuitivo que será indispensável um certo impulso de introversão: ou seja, aumento substancial da produção para satisfação do mercado interno. Isto é, privilegiar a agricultura – tirar partido económico da reforma agrária e não juros políticos para conquista de apoios à direita – intensificar o aproveitamento de recursos naturais, a substituição de importações, a consolidação de uma malha de indústrias básicas de controlo nacional, o lançamento de projectos de investimento com fraca componente de importações.
(…)
E, acima de tudo, é questão de plataforma honesta e patriótica de entendimento com os trabalhadores através das suas organizações representativas. Tal entendimento não será obviamente praticável se a política económica, em intenção ou na prática, admitir a diminuição dos salários reais e o agravamento do desemprego, como agora sucede.
Em pura lógica da divisão internacional do trabalho no mercado mundial (capitalista já se vê) tais tendências são inexoráveis, no caso português, nesta fase de transição e os teóricos do sistema apenas advogarão as pseudo-soluções clássicas dos “equilíbrios” de mercado: saída de mão-de-obra e entrada de capitais externos. Tais “soluções” não só nada têm a ver como o socialismo mas também se opõem à democracia: implicam um regime político autoritário fascista ou fascizante – chama-se a isto capitalismo de Estado dependente, e não carece de demonstração reconhecer que se trata de contra-modelo da concepção constitucional de organização económica e social do País.

17.2. Outra, de Francisco Pereira de Moura, que no decorrer da sessão me foi suscitada, que retiro de duas páginas de um diário e com que fecharia:
Luanda, 13 de Novembro de 1975
O camarada-presidente Agostinho Neto faz uma breve pausa, mexe o café, fita-me e lança pausadamente a pergunta que eu esperava e temia: “E o Governo português?” Referia-se à total ausência nas cerimónias da independência e a tudo quanto essa atitude significava. A voz era calma, mas não disfarçava um amargor que ia muito para além das divergências políticas do momento.
(…) tive de me recordar da missão internacional em que estava integrado para não desabafar e pôr o problema em toda a crueza – começava assim: “Que quer? Falta-nos o camarada Vasco”.

Intervenção de Duran Clemente



Intervenção de Duran Clemente no Debate - 35 Anos da Constituição da República. Acção e papel dos Governos de Vasco Gonçalves

MFA e Vasco Gonçalves
-O que era o MFA
Falar do Movimento das Forças Armadas (MFA) e de Vasco Gonçalves (VG),das Conquistas da Revolução e, no âmbito destas, de uma das conquistas “fundamentais” : a Constituição da República de 2 de Abril de 1976 - (vão 35 anos) - é termos, antes de mais, de falar dum MFA como um conjunto de militares, constituídos num corpo unitário, mais ou menos coeso, que com a experiência e aprendizagem na guerra colonial e com as contradições e motivações da época são capazes do acto sublime:
- o da Libertação de um Povo (e também dos Povos colonizados em sintonia com os seus movimentos libertadores)
Mas também teremos de reflectir que esse mesmo “MFA não era um movimento revolucionário: tinha revolucionários nas suas fileiras mas isso não fazia dele um movimento com essas características” (citamos,VG). Procurava sobretudo realizar um programa que tinha como base o derrube do regime ditatorial e fascista, acabar com a guerra colonial e instaurar um regime democrático. Mas dentro do MFA havia militares com várias tendências e diferentes graus de politização. Não era um corpo homogéneo e muito menos de homogeneidade revolucionária. São palavras do próprio VG: ”os aspectos mais progressistas da actuação do MFA são motivados pelo levantamento popular num sentido revolucionário”. E pelas lições dadas por todos os antifascistas, na sua estóica, luta contra a ditadura e colonialismo.
[…faz hoje 57 anos, 20 anos antes da nossa alvorada, uma simples camponesa era barbaramente assassinada. “Antes morrer que ser escrava”, foi o sentido das suas últimas palavras. Alentejo. Baleizão … chamava-se Catarina… 19 de Maio de 1954…]
Foi o pulsar do Povo (dos Povos) e a força da sua razão e exemplos como este de Catarina Eufémia, entre muitos, que também nos conduziram à acção de revolta.
-Vasco Gonçalves e a vertente progressista do MFA
Falar de Vasco Gonçalves e das razões que nos trouxeram hoje aqui para debater e reflectir é sermos fiéis à justiça e ao reconhecimento. É falar de Vasco Gonçalves, da sua acção como militar e politico revolucionário [seja como “capitão de Abril”, como membro da CC do MFA, como primeiro chefe da 5ªa Divisão do EMGFA, seja como primeiro-ministro dos 2º,3º,4º e 5º Governos Provisórios…seja como um dos mais puros capitães de Abril caluniado e vilipendiado]. É reflectir também sobre a vertente do MFA que sempre com ele esteve e sobre as iniciativas e organizações criadas, sob o seu impulso, e que mais não fizeram que, ao dar-lhe apoio, apoiarem o Povo, apoiarem a Revolução
É , ainda e sempre, falar da intervenção de VG, também na colaboração do texto final, do próprio Programa do MFA, como na sua interpretação deste.
Para Vasco Gonçalves havia militares que faziam do Programa do MFA uma leitura estática, respeitando apenas o texto, mas havia outro MFA, a que ele pertencia e era a sua referência, a entendê-lo como um projecto suficientemente aberto à evolução da própria realidade. Para ele, e para o MFA revolucionário, novas dinâmicas surgiram que, não estando previstas à partida, impuseram uma interpretação “não apenas literal” do Programa do MFA. Programa este onde estão expressas as acções programáticas essenciais e que constituem emanação profunda das gentes sacrificadas deste país, dum Portugal oprimido e isolado durante 48 anos, exigindo:
- “numa nova política económica…… uma estratégia anti-monopolista”…”e
- “numa nova politica social…… a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo mas acelerado da qualidade da vida de todos os portugueses”
O programa do MFA é emanação da vontade dum povo e dum povo inteiro, daquém e de além-mar, onde os capitães de Abril, durante longos treze anos, beberam ensinamentos: com os combatentes, dum lado e doutro, com as contradições do fascismo e do colonialismo…mas também com as lições dos ventos da época e de quantos, resistentes e militantes, durante meio século lutaram e morreram, pelo fim da noite escura, pelo fim da ditadura…
A acção do MFA, sendo o resultado duma experiência de organização e unidade, de jovens capitães, que emerge, se consolida e se organiza, é com as armas nas mãos do povo-soldado…que faz o 25 de Abril.

-A aliança Povo-MFA
A partir dessa alvorada luminosa, da “Renascença da Esperança”, Vasco Gonçalves é quem melhor interioriza o Programa do MFA, como bússola que traça um rumo e lhe dá mais força para a liderança das “Conquistas da Revolução”, em nome do seu povo, e que a Constituição de 1976, contra ventos e marés, acabará por consagrar.
A partir do momento que V.Gonçalves dá ao programa do MFA o único significado que ele podia ter: uma ordem de missão para acabar de vez com os resquícios fascistas e construir uma democracia do Povo e para o Povo, vê-se a braços, e de que maneira, com os inimigos desta dinâmica. E o grave é que isso aconteça dentro do próprio MFA…após a queda de A.Spínola e dos falhanços das forças conservadoras militares e civis que o acolitavam.
Os “capitães de Abril” e a seus representantes - a Comissão Coordenadora do MFA - (CCMFA) foram, ainda, firmes e coesos, quer no “golpe Palma Carlos”, em Julho, quer no “golpe da maioria silenciosa”, em 28 de Setembro. Resistindo aos ímpetos dum projecto pessoal e de ganância de Poder, o MFA não só afasta e recusa os propósitos do General Spinola, como escolhe, entre um dos seus militares, Vasco Gonçalves para a responsabilidade de chefiar o segundo e o terceiro Governos Provisórios, respectivamente a 18 de Julho e a 1 de Outubro. Em ambas as tomadas de posse Vasco Gonçalves reitera a decisão inabalável de cumprir escrupulosamente o Programa do Movimento e em entrevista, horas depois desse acto, é absolutamente claro ao afirmar: “A unidade entre o Povo e o MFA constitui condição fundamental do nosso progresso”.
Sabíamos de que Povo o General falava…mas e que se passava no seio do MFA?
Do MFA que não tinha falhado nas medidas e conquistas politico-sociais, impulsionadas pelos governos de V.G. e fora imperturbável no processo, complexo e difícil, do início da descolonização (mesmo, e ainda, com Spínola?
Esse MFA, apesar das então criadas 5ªDivisão do EMGFA, das acções da Dinamização Cultural, das mais diversas e criativas formas de esclarecimento público, começava agora, para os revolucionários, a dar os primeiros sinais….de vulnerabilidade ”…da incapacidade de o MFA revolucionário estender a sua influência a todas as Forças Armadas, do demissionismo, quantas vezes deliberado, de oficiais não afectos ao MFA, das dúvidas e receios de militares menos esclarecidos politicamente, cuja formação conservadora e tradicionalista os perturbava e tornava incompreensível o processo revolucionário…tendo neste aspecto um papel muito negativo as actividades provocatórias esquerdistas.” (citamos, VG). E não esquecendo, num xadrez mais alargado, a interacção/influência daquilo que o fascismo deixara implantado nas nossas terras…do caciquismo e do clero conservador e preconceituoso… do índice de analfabetismo que rondava os 33 % da população…!!!
Mas cisões maiores se cavavam precisamente na necessidade de salvar a economia para salvar a revolução e aqui ressurgem os disfarçados ataques do “capital” (quer nacional quer imperialista) que, sentindo-se a perder terreno, é exímio na concretização dos mais ousados esquemas de destabilização e de divisão.
Ora, não só pelo que se referiu, como pela evolução dos acontecimentos, mesmo o núcleo duro do MFA deixa-se descompensar e perde em firmeza e coerência aquilo que lhe oferecem em debilidade e inconsequência…na aspiração duma “velha aparente estabilidade de ordem externa” que jamais disfarçará uma “profunda desordem interior e mal-estar social”, absolutamente em contraste com um novo Portugal que se queria como sociedade mais justa e equilibrada.
Bem se esforçou Vasco Gonçalves e se esforçaram os revolucionários militares e civis.
-Ruptura anunciada/28 de Setembro
Na sequência do 28 de Setembro, nasce o Conselho dos Vinte, um conselho directório que procura acabar como o fim dos ataques á genuína “essência dos capitães de Abril” e ao cumprimento do seu programa…não perder nos gabinetes e/ou pela mão dos militares conservadores o que já se conquistara. Reforça-se, assim, a necessidade e a vontade da institucionalização do MFA.
Nascem as Assembleias do MFA (AMFA) suscitadas pela positiva experiência da sua criação no processo de descolonização da Guiné-Bissau. Abre-se ainda mais o caminho para referida institucionalização.
Iniciam-se as conversações com os partidos para lhes comunicar o desejo da institucionalização e criar um modus-vivendus com eles. O Pacto MFA-Partidos.
A Dinamização Cultural e acção da Quinta Divisão empenham-se, ainda mais, em garantir a continuidade e desenvolvimento do processo revolucionário.
Vasco Gonçalves e o MFA, através do seu Boletim, dirigido pela CCMFA e corpo redactorial da 5ª Divisão, fazem sair, um artigo de fundo, sob o título”O MFA: do Politico ao Económico” em meados de Novembro de 74. Apela para a urgência de se tomarem medidas de carácter económico, lançar as bases para um efectivo controlo da actividade básica pelo Estado e da luta contra a sabotagem ainda vigente… criando condições que permitam melhorias da qualidade de vida dos portugueses e promovam o desmantelamento da base económica do fascismo, da indiferença dos latifundiários às solicitações do Governo e do MFA para a realização de projectos de aproveitamento económico das terras. Foi então criado, pelo Conselho de Ministros, um grupo de trabalho, constituído por certas personalidades, da área económica e social. O grupo, coordenado por Melo Antunes, demorou excessivo tempo a produzir o documento. Quando apresentado, apesar das reservas de VG e do próprio MFA, ele acabou por ser aprovado, quer no CR quer numa AMFA a 21 de Fevereiro de 1975.
-11 de Março/o sonho do socialismo português
Com a tentativa golpista do 11 de Março, precipitada novamente por A.Spínola e as suas hostes desesperadas, para fazer gorar a institucionalização do MFA…tudo se precipita. Na célebre A.MFA de 11 para 12 de Março de 1975, a par da confirmação das eleições para a Assembleia Constituinte, como previsto e como ponto de honra do Programa do MFA, opera-se a institucionalização do MFA, criando-se o Conselho da Revolução (CR) dois dias depois. No patamar económico-social são apontadas a necessidade de se tomarem as medidas mais revolucionárias deste processo nomeadamente as nacionalizações. Estas foram das primeiras medidas do neófito CR. Foram dados poderes a Vasco Gonçalves para formar a 4ª Governo Provisório que inicia suas funções a partir de 27 de Março. A reestruturação da banca nacionalizada; o controlo das empresas privadas pelo Estado; a criação do sistema de Planeamento; o prosseguimento da nacionalização dos sectores básicos e a reforma agrária, são as principais bases da agenda e programa deste governo.

-Contradição entre o Processo eleitoral e o Processo revolucionário
Avança-se para eleições e para o pacto: MFA-Partidos. Já referimos anteriormente o alcance deste Pacto “não perder prematuramente as conquistas alcançadas e tentar incluí-las na Constituição de 1976”.Embora houvesse consenso no núcleo duro do MFA veio-se a confirmar que quem punha reservas às medidas revolucionárias mais tarde se constituiria no chamado “grupo dos nove”.Mas aos partidos de direita e incluindo o PS não interessaria divulgar tais reservas antes das eleições. Houve aqui um tacticismo eleitoralista…Percebe-se bem porquê.
Após as eleições e com a vitória do Partido Socialista (PS) logo seguido pelo PPD estes partidos procuraram acabar com o processo revolucionário, agravando as condições que eram naturais entre os dois processos e tudo serviu de pretexto. O Processo revolucionário foi travado mas não completamente derrotado: as conquistas alcançadas durante o período mais criativo da Revolução foram, efectivamente, todas consagradas na Constituição de 1976.
A partir das eleições o PS inicia acções e um comportamento nada conducente com o seu ideário socialista e promessas eleitorais, fomenta divisões entre sindicatos e trabalhadores e salienta-se como um dos principais aliados das forças contra-revolucionárias.
O capital e os inimigos da revolução, (sobretudo os que perderam privilégios) montam centrais de intriga, de intoxicação e de inquietação junto das populações. Faz-se crer que VG e o Partido Comunista (PCP), “ são uma e a mesma coisa” e que pretendem controlar tudo. O anticomunismo primário sai à rua. Alarmam-se pessoas, sobretudo as menos esclarecidas com fantasmas e preconceitos.
Assim, PS e PCP, cavam entre si profundas cisões e consequentemente elas repercutem-se no movimento popular e no seio do MFA. Vasco Gonçalves chega a ter reuniões com Mário Soares e Álvaro Cunhal, mas sem sucesso.
De modo a superar as contradições partidárias, sem nunca pôr em causa os Partidos mas, num momento delicado da vida nacional, procurando uma plataforma de unidade estratégica entre si, VG e o MFA, para além do diálogo que incentivam entre eles, procura também avançar para o aprofundamento duma política de estímulo à participação popular, através das suas organizações e ao estreitamento das relações entre o MFA e estas estruturas, procurando institucionalizar a Aliança POVO-MFA.
-O ataque a Vasco Gonçalves e ao MFA progressista/” Verão Quente”
Na própria Assembleia Constituinte os deputados do PS e dos partidos mais à direita atacam o Governo.
VG e a corrente dos militares do MFA, mais à esquerda, tentam “superar as contradições partidárias” com a aprovação de documentos como o PAP – Plano de Acção Política e do Documento Guia da Aliança Povo-MFA. Embora este último, não reunisse grande consenso. Mas é sobretudo este Documento-Guia com forte influência dos sectores radicais do MFA, que leva a saída dos ministros do PS e do PPD do 4º Governo e à criação duma gravosa situação que só se regulariza em 8 de Agosto com o inicio dum novo Governo, este apartidário e com carácter transitório - o 5º Governo Provisório… cuja tomada de posse se realiza um dia depois da publicação do designado “Documento dos Nove”(que põe em causa VG e o MFA revolucionário) e também cinco dias antes do dito “documento de Oficiais do COPCON”(que procurando contrapor-se àquele documento, abre a porta a futuras posições de radicalismo contra VG e os militares da sua linha).
Porque os nove oficiais do documento referido são todos do CR instala-se definitivamente uma cisão neste órgão. Na tentativa da superar é ainda criado nessa ocasião um directório constituído por Gosta Gomes, Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho.
Estava aberta a contestação a V.G. já com alguns anteriores incidentes, não só, por parte dos oficiais ditos moderados, como por parte de ministros do PS a quando do chamado caso (jornal) “República”.
Após peripécias várias, num efectivo “Verão Quente” de 1975, com distúrbios graves, sobretudo a norte do país provocados e incendiados por um então grupo contra-revolucionário - MDLP -, com as acções desesperadas da extinção, em Agosto, da 5ª Divisão do EMGFA, cujas instalações são assaltadas pelo Regimento de Comandos às ordens de Otelo Saraiva de Carvalho, chefe do Comando Operacional do Continente (COPCON), com um documento “insultuoso” subscrito por este a convidar de forma nada digna o abandono de VG de primeiro-ministro e a proibi-lo de entrar em quartéis e de mais factos perturbadores e perturbantes de conflitos de gabinete e de rua… o processo precipita-se .É numa AMFA em Tancos, constituída por militares, delegados, intencionalmente seleccionados, que o MFA progressista e revolucionário se vê afastado…do seu processo, ao decapitarem-lhe a sua cabeça…aquele que será sempre para nós (quer militares do MFA que o seguiam, quer para as populações que o estimavam e amavam) mais do que o General Vasco Gonçalves…o eterno Companheiro Vasco…timoneiro das mais singulares e valiosas Conquistas da Revolução que esta Associação quer preservar, muito particularmente em sua homenagem e ao povo português…que o mereceu …que mereceu este HOMEM, simples,íntegro e revolucionário, ao leme desta barca.
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Passados mais de quinze anos VG dá uma longa entrevista a Manuela Cruzeiro, editada em livro, em 2002:
É de Vasco Gonçalves este excerto premonitório, da situação que vivemos, agora em 2011:
“…já havia o objectivo de romper com aqueles militares que mais consequentemente apoiavam as aspirações populares e travar o aprofundamento da democracia…e digo isto passados tantos anos…porque desde a queda do 5º Governo Provisório temos vindo a assistir à reconstituição duma democracia política que convive bem com as limitações dos direitos sindicais e políticos dos trabalhadores, com a destruição do sector público da economia, com a destruição da reforma agrária, com a sucessão de pacotes de Leis cada vez mais gravosos para os trabalhadores que vão sendo aplicados à medida que a direita e a reacção ganham cada vez mais força”.
Resta-nos, sem revivalismos nem endeusamentos, a obrigação de não deixar apagar a memória, para com as lições do passado estarmos mais preparados; conscientes que há vitórias e derrotas nas batalhas diversas que se travam nas revoluções, sendo como dizia Brecht: “que a grande vitória é continuar a lutar…a lutar por uma sociedade mais justa e igualitária”( tradução livre).
E também como diria o poeta ….”Um revolucionário/não cabe na politica/mas cabe/nos metros úteis da poesia estrita”
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[…19 Maio 2011/Debate na Casa do Alentejo, ciclo de iniciativas de lançamento da Associação Conquistas da Revolução ]
(*) OBS. Por razões de partilha de tempo, face às seis intervenções programadas, este texto foi objecto, na intervenção oral, de uma síntese feita pelo autor.

Intervenção de Manuel Gusmão



Intervenção de Manuel Gusmão no Debate - 35 Anos da Constituição da República. Acção e papel dos Governos de Vasco Gonçalves

A CONSTITUIÇÃO DE ABRIL

1.
Nascida da Revolução de Abril de 1974, a Constituição da República Portuguesa, promulgada a 2 de Abril de 1976, legitima e ratifica a revolução. Ou seja: acolhe as suas principais conquistas e consagra o sentido da sua dinâmica revolucionária: (cito do preâmbulo) “abrir o caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno”.
A Assembleia Constituinte aprovava e decretava, assim, uma Constituição que era profundamente democrática e um justificado motivo de orgulho dos portugueses perante os outros povos do mundo.

2
A Constituição de 1976 forma um todo estruturado, coerente e consistente.
Não há duas Constituições como alguns pretenderam, para a sabotarem. Uma, a boa, seria a dos direitos e da democracia política. Outra, a má ou a péssima, a da organização económica e social do estado, a da transição para o socialismo. Na sua génese, no seu articulado e no projecto que configura, ela exprime uma tripla correlação.
2.1.
A1ª é a correlação entre uma sustentada vontade de ruptura com o passado autoritário e fascista, e a afirmação dos direitos, liberdades e garantias democráticos.
Fruto dos mais fundos valores, convicções e ideais da resistência anti-fascista, a Constituição manifesta uma concepção moderna e integrada dos direitos. Diferentemente da concepção liberal que considera como direitos fundamentais, apenas os direitos civis, entendidos como direitos individuais e políticos, a Constituição da República integra os direitos económicos, sociais e culturais, e especificamente os direitos dos trabalhadores. Enquanto na tradição liberal, os direitos a proteger apenas requerem uma suposta omissão de intervenção do Estado; a concepção que a Constituição acolhe é mais exigente. A efectivação desse leque mais vasto de direitos, que podem ser simultaneamente individuais e colectivos, requer uma acção de discriminação positiva, ou obrigações da parte do Estado.
Por isso, o artº 50 (garantias e condições de efectivação) enunciava assim o princípio geral que valia para todo o universo dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais:
A apropriação colectiva dos principais meios de produção, a planificação do desenvolvimento económico e a democratização das instituições são garantias e condições para a efectivação dos direitos e deveres económicos sociais e culturais.
Por isso, também, a seguir ao artigo 51º, que consagrava o direito ao trabalho, se seguia um outro que definia as obrigações do Estado quanto à efectivação desse direito. E a seguir ao artigo que consagrava os ditreitos do trabalhadores, o art.º 53º, se seguia um outro dedicado igualmente a definir as obrigações cometidas ao Estado para “assegurar as condições de trabalho, de retribuição e de repouso a que os trabalhadores têm direito”.
2.2.
A 2ª correlação é a da amplitude e profundidade da democracia política e da sua unidade com a democracia económica, social e cultural.
A Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da representação como princípio fundamental da democracia; mas não reduz os direitos políticos à representação eleitoral, tal como não reduz a democracia política à democracia representativa, antes procura estimular o exercício imprescindível da participação democrática.
Art.º 112- A participação directa e activa dos cidadãos na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático.
Assim, a Constituição colocava como indissolúveis os laços entre a democracia política e a democracia económica e, social e cultural. A unidade entre essas instâncias da democracia é o que faz com que cada uma delas seja função e factor das outras.
Quanto ao que diz respeito à organização económica, o texto constitucional acolhe e consagra as grandes conquistas revolucionárias; a saber, as nacionalizações, o controlo de gestão e a Reforma Agrária.
No art.º 83 escrevia-se expressamente “Todas as nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 são conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras .”
Mas a Constituição não se limitava a legitimar as novas formas de propriedade que tinham nascido da revolução. Ela dava-lhes um sentido social, apresentava uma dinâmica e objectivos para o seu desenvolvimento e definia expressamente os seus destinatários e beneficiários. Assim, no art.º 81º, em que se definiam as incumbências prioritárias do Estado lia-se:
a) Promover o aumento do bem-estar social e económico do povo, em especial das classes mais desfavorecidas;
b) Promover a igualdade entre os cidadãos, através da transformação das estruturas económico-sociais;
c) Operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento;
g) Eliminar e impedir a formação de monopólios, através de nacionalizações ou de outras formas, bem como reprimir os abusos do poder económico e todas as práticas lesivas do interesse geral;
h) Realizar a Reforma Agrária;
i) Eliminar progressivamente as diferenças sociais e económicas entre a cidade e o campo.
o) Estimular a participação das classes trabalhadoras e das suas organizações na definição, controlo e execução de todas as grandes medidas económicas e sociais.
A Constituição proclamava a subordinação do poder económico ao poder politico democrático.
2.3.
A terceira correlação era a que unia a democracia e a vontade de ruptura em relação ao passado de submissão nacional e de opressão colonialista, com a afirmação da independência e a soberania nacionais.
Assim, o Art.º 7º afirma
1. Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do direito dos povos à autodeterminação e à independência […] da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com o de todos os outros povos […]
2. Portugal preconiza […] o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança colectiva […].
3. Portugal reconhece o direito à insurreição armada contra todas as formas de opressão, nomeadamente contra o colonialismo e o imperialismo […]
3.
A CRP de 1876 é um texto avançado, coerente e harmonioso. Entretanto, a vida da Assembleia Constituinte não fora fácil. Houve quem quisesse retardar o ritmo dos seus trabalhos; Houve quem tentasse provocar um choque entre a dinâmica eleitoral e a dinâmica revolucionária. Quem tentasse transformá-la na câmara de ressonância das vozes já empenhadas na contra-revolução. Houve até quem quisesse deslocalizá-la, na esperança de a furtar à legítima pressão popular. Mas a Assembleia Constituinte resistiu e constitucionalizou a Revolução portuguesa.
COMO FOI ISSO POSSÍVEL?
A Constituição de 1976 foi uma plataforma que uniu e representou a aliança instável e precária de um conjunto de forças políticas, sociais e militares. Ela exprime, no seu texto, uma determinada correlação de forças de classe.
Ela é redigida, aprovada e decretada por uma Assembleia Constituinte onde a correlação de forças era, á partida, menos favorável do que a que existia no país. Mas esta pressionava aquela. A força das massas em movimento, nas fábricas e nas empresas, nos campos do Alentejo e do Ribatejo, nas escolas e nas ruas ecoava em S. Bento, de forma irresistível.

Nesse sentido, podemos dizer que quem redigiu a CRP não foram apenas os deputados constituintes. Também a classe operária, os trabalhadores e as massas populares, pela sua iniciativa e acção, o seu trabalho e a sua luta, a redigiram. Não se trata de uma figura de retórica gasta. Foram, de facto, as massas populares que, embora sem ter conseguido o poder de estado, tiveram a força suficiente, para obterem, num curto espaço de tempo, profundas conquistas, económicas sociais e políticas. Tão profundas que desde a aprovação da Constituição (há 35 anos), as forças que têm suportado a política de direita têm concentrado esforços para as erradicar da realidade portuguesa, e apagar da consciência e das convicções dos portugueses.
São 35 anos de contra-revolução que foram também, a partir de 1982, anos de revisão constitucional; 35 anos de governos a não cumprirem a Constituição. Durante todos estes anos a Constituição foi responsabilizada por todos os males e bloqueios da sociedade portuguesa. A hipocrisia e a má-fé acusaram a Constituição de Abril de ser prolixa e demasiado ideológica. Mas o que efectivamente os incomodava era que falava demais em trabalhadores, em transição para o socialismo e usava outras palavras terríveis como essas. O que queriam era substituir uma ideologia por outra. Assim, A CRP foi combatida e não foi cumprida, quer por omissão, quer por grosseira desfiguração. Ainda hoje há quem queira continuar a destruí-la. E voltam a lançar mão desse imenso logro, dessa tremenda desonestidade intelectual, que consiste em afirmar que a Constituição é a responsável por uma política feita contra ela.
É obra, amigos: 35 anos a destruírem o que levou um pouco menos de 2 anos a conseguir, um pouco menos de um ano a escrever. São 35 anos que nos trouxeram a esta situação à beira de um desastre nacional. São trinta e cinco anos em que se foi formando uma real coligação de interesses entre um partido que mantém no seu nome a designação de “socialista”, mas que enterrou na sua prática política todo e qualquer “socialismo” e os dois partidos da direita clássica. Começaram por cedências à direita para a acalmarem, diziam. Depois competiram com ela na disputa de um centro que, graças a essa competição, descaía cada vez mais para a direita. Enterraram, no pântano do neo-liberalismo, o móvel com a gaveta, onde tinham fechado, para nunca mais, o socialismo. Agora concorrem arduamente com o PSD e o CDS, pela liderança da política de direita.
Tenhamos, entretanto, confiança, amigos.
O que foi possível uma vez, na história, a irrupção do futuro, nas lutas do presente, será possível outra vez.

35 Anos da Constituição da República. Acção e papel dos Governos de Vasco Gonçalves





No passado dia 19 de Maio, a Associação Conquistas da Revolução realizou o debate - 35 Anos da Constituição da República. Acção e papel dos Governos de Vasco Gonçalves -
Na presença de mais de 80 civis e militares, a Associação reafirmou o seu papel na defesa das conquistas da revolução do 25 de Abril de 1974.

Debate - 35 Anos da Constituição da República. Acção e papel dos Governos de Vasco Gonçalves - 19 de Maio – 21h00 – Casa do Alentejo



Intervenientes

Duran Clemente - Capitão de Abril
Modesto Navarro - Escritor
Ernesto Cartaxo - Sindicalista
Oliveira Batista - Min.Gov.de V. Gonçalves
Manuel Gusmão - Deputado Constituinte
Sérgio Ribeiro - Economista

Moderador
Manuel Begonha - Capitão de Abril

Última entrevista de Vasco Gonçalves




por Viriato Teles [*]

Entre 18 de Junho de 1974 e 12 de Setembro de 1975, foi o Primeiro-Ministro de Portugal, e esse foi o tempo mais gratificante da sua vida. Aos 452 dias iluminados que então viveu, mais de dez mil horas quase todas vividas de olhos abertos, juntem-se-lhe todos os outros e as noites e as madrugadas acesas que fizeram o ano e meio da Revolução. Vasco Gonçalves sorri quando fala desse período, e não é um sorriso de dor ou de saudade: é o riso sereno de quem cumpriu o seu destino e está feliz por com isso ter contribuído para melhorar o destino dos outros.

Vasco, o Companheiro Vasco, foi o único ocupante do Palácio de São Bento a quem o povo concedeu o gosto de tratar pelo nome próprio. Os adversários e os inimigos vingaram-se, inventando o gonçalvismo – tentanto resumir num homem aquilo que para eles era a fonte de todos os medos, mas que mal ou bem nascia dos mais puros anseios de um povo que, pela primeira vez na história recente, tinha como chefe do Governo um homem que o escutava e, mais importante, o compreendia.

Por esse tempo, Lisboa era um centro de conspirações e um ninho de espiões como já não havia desde a II Guerra Mundial. Longe, em Washington e em Moscovo, os senhores do mundo sentiam-se incomodados com este homem que falava como quem ama. Por razões diferentes mas concatenantes, Brejnev e Kissinger estavam preocupados com o futuro político deste país esquecido à beira-Atlântico. Esquecido, mas fundamental por razões geo-estratégicas, já que fica a meio do eixo que ligava e separava as capitais dos dois impérios.

Depois do 11 de Março de 1975, Vasco Gonçalves foi o centro de todas as atenções: daqueles que o admiravam, como daqueles que o temiam. Durante o PREC, Vasco e a Revolução foram uma e a mesma coisa. A queda do V Governo Provisório, dois meses antes de Novembro, foi o prenúncio de que a Revolução estava a chegar ao fim: "Vasco voltará", garantiam, então, os seus seguidores mais crédulos. Vasco não voltou, claro. Pela simples razão de que não chegou nunca a partir: ficou aqui, entre os seus. Certamente magoado por não ter tido todo o tempo que merecia, mas ainda assim feliz por ter vivido o que viveu. E o certo é que, nesse tempo, as pessoas eram felizes – mesmo as que não gostavam dele. E, isso, ninguém lhe pode tirar.

Viriato Teles: – Saudades de Abril, General Vasco Gonçalves?

Vasco Gonçalves: – Tenho, naturalmente, saudades de Abril. Mas saudades saudáveis, não nostálgicas ou melancólicas. Saudades que animam a luta pelo futuro.

VT: – "Não imagino como seria a minha vida se não tivesse participado no 25 de Abril". São palavras suas. Como é a sensação de estar não apenas a viver a História mas também a transformá-la?

VG: – Uma grande alegria de estar a participar activamente, com o nosso povo, com os militares, num processo de transformação profunda, estrutural, da nossa sociedade a caminho da justiça social, da libertação do homem, do socialismo.

VT: – Há quem diga que o 25 de Abril nasceu como golpe de Estado e só quando o povo saiu à rua se deu a revolução. Está de acordo?

VG: – No dia 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas derrubou o governo fascista-colonialista. Nesse mesmo dia, apoiando o golpe militar, desencadeou-se um espontâneo e vigoroso movimento popular e nacional. O impulso das massas populares e dos trabalhadores, exigindo um empenhamento social e político mais alargado e profundo do que o inicialmente previsto pelo Movimento das Forças Armadas, fez com que a relação de forças dentro do Movimento fosse favorável aos militares que mais se identificavam com as aspirações, as reivindicações, os interesses populares, e imprimiu uma dimensão revolucionária ao golpe militar.

VT: – Há uma frase sua – no livro que fez com Maria Manuela Cruzeiro – a propósito do Programa do MFA, em cuja redacção participou: "Considerei que o Programa era muito interessante, uma vez que tinha sido elaborado por militares e estava nitidamente mais avançado do que o pensamento comum da generalidade dos militares". Quem o ouvir falar, até pode pensar que o senhor não tem grande apreço pelas qualidades intelectuais dos militares. É verdade?

VG: – Essa dedução é errada. Do conteúdo em que se insere essa passagem da entrevista conclui-se, facilmente, que "pensamento" se refere a pensamento político, e não a pensamento tomado em sentido intelectual ou de desenvolvimento intelectual. Os militares eram sistematicamente educados e endoutrinados com o objectivo de afastar o seu pensamento das questões políticas e de os fazer aceitar como nacional e patriota a política do Estado Novo, ditatorial, da qual as Forças Armadas eram o último e decisivo sustentáculo. A Guerra Colonial foi para a grande parte dos oficiais do Quadro Permanente uma verdadeira escola de educação política, uma escola de consciencialização política, de percepção e de conhecimento das relações económico-sociais que conduziam à guerra que o governo fascista-colonialista fazia aos movimentos de libertação anti-colonialista e que arrastava o país para a grave situação em que se encontrava. Ora, o Programa reflectia essa consciencialização política, adquirida em grande parte com a guerra, pelos militares mais esclarecidos, que dirigiam o Movimento.

VT: – Já ouvi algumas pessoas dizerem que, a princípio, desconfiaram do 25 de Abril por ser "uma coisa de militares". A verdade é que, por regra, quando os militares tomam o poder não é por boas razões. O que é que fez a diferença em Portugal?

VG: – O facto de as Forças Armadas terem sido o principal sustentáculo do governo fascista-colonialista, durante 48 anos, o conhecimento do mal estar generalizado existente nas Forças Armadas, provocado pela continuação da Guerra Colonial sem solução à vista, o conhecimento de que elementos da ultra-direita, entre os quais Kaúlza de Arriaga, descontentes com o governo pelo rumo que a guerra tomava, se movimentavam politicamente, terão levado a que houvesse esses temores. Mas essa movimentação política da ultra-direita foi, desde logo, contrariada e desmascarada, no seio das Forças Armadas pelo movimento de oficiais em processo de formação o qual pretendia que fosse alcançada uma solução política para a Guerra Colonial.

VT: – Durante os seus governos, Portugal conheceu modificações extraordinárias: nacionalizaram-se os bancos e as principais indústrias, fizeram-se as campanhas de alfabetização, garantiram-se os principais direitos dos trabalhadores, avançou a reforma agrária… Pode dizer-se que o essencial das "promessas de Abril" se desenvolveu durante os seus governos. Na altura teve consciência plena da dimensão da mudança que estava a protagonizar?

VG: – Tive. De facto, ao longo do processo histórico da Revolução de Abril foi surgindo, nas suas linhas gerais, um modelo de transição pacífica, democrático e pluralista para a democracia e o socialismo. Este modelo foi sendo elaborado, na prática, nas condições políticas, sociais, económicas e culturais do nosso país, fortemente determinadas pela aliança Povo-MFA, na dinâmica de uma acesa luta de classes, no contexto da crise económica capitalista de 1973-75 e das relações internacionais caracterizadas pela Guerra Fria. Sem dúvida que tive consciência da mudança que se estava a verificar, na qual participava, empenhadamente, como membro do Movimento das Forças Armadas, no contexto da aliança Povo-MFA.

VT: – Depois de uma viagem a Cuba, Otelo Saraiva de Carvalho teve uma das suas declarações mais famosas, ao dizer que podia ser "o Fidel de Castro da Europa". O General Vasco Gonçalves alguma vez pensou em algo semelhante?

VG: – Não.

VT: – Por falar em Cuba: acredita que os cubanos vão conseguir resistir aos apetites norte-americanos?

VG: – Acredito. O êxito da resistência depende de numerosos factores objectivos e subjectivos, nacionais e internacionais, das correlações de forças que se vão verificando a nível nacional. Entre esses factores se destacam o patriotismo, a coesão, a consciência política, a vontade e a determinação do povo cubano, a construção real, apesar dos tremendos condicionalismos impostos pelo imperialismo norte-americano, de 45 anos, de uma sociedade que tem por objectivo, fundamental, a justiça social e a equidade. Cuba é um exemplo, para todos nós, de que é possível resistir ao imperialismo norte-americano.

VT: – A meu ver, a sobrevivência até aos nossos dias do regime cubano deve-se não apenas às condições geopolíticas – já que Cuba conhece como ninguém o significado da palavra imperialismo – mas também ao facto de ali se ter desenvolvido um "socialismo latino", de características próprias. Nós, em 74-75, também pensávamos que era possível uma "via original" para o socialismo. Hoje, ainda acredita nisso?

VG: – A Revolução de Abril instaurou um regime de amplas liberdades, garantias e direitos políticos, cívicos, culturais, sindicais e laborais; destruiu as bases do capitalismo monopolista de estado e dos grupos económicos monopolistas; nacionalizou a banca e as companhias de seguros, os sectores básicos da produção, as principais empresas de transportes e comunicações, criando um sector público de peso determinante na nossa economia, na regulação do mercado e no comércio externo; realizou a Reforma Agrária com a supressão do latifúndio, dando origem à constituição de unidades colectivas de produção constituídas e dirigidas por trabalhadores assalariados rurais, trabalhadores sem terra e pequenos e médios proprietários rurais; aprovou uma nova lei de arrendamento rural, e devolveu aos povos os terrenos baldios; melhorou e dignificou substancialmente as condições de vida dos trabalhadores em geral e das mais vastas camadas da população; promoveu transformações progressistas no ensino, e um extraordinário aumento da frequência escolar; aprovou a criação do Serviço Nacional de Saúde, e desenvolveu a cultura e o desporto populares. As conquistas democráticas alcançadas, nomeadamente no período mais criativo da Revolução, entre o 11 de Março e a queda do V Governo Provisório, foram todas consagradas na Constituição da República de 1976. A Constituição é filha da Revolução. As conquistas de Abril eram o caminho para o futuro de Portugal. Elas continuam, hoje, a ser devidamente analisadas, ponderadas, adaptadas e ajustadas, um objectivo para esse futuro, face às novas realidades do nosso país e do mundo. Uma missão da OCDE que esteve entre nós de 15 a 20 de Dezembro de 1975, composta por três professores do Departamento de Economia do Instituto de Tecnologia de Massachussets afirmou no seu relatório que "no princípio de 1976 a economia portuguesa está surpreendentemente saudável". A política económica que foi posta em prática, numa situação com as características da situação revolucionária que vivemos, naturalmente agitada e de grandes contradições sociais, no contexto da crise capitalista de 1973-75, a maior do pós-guerra, mostrou-se, pois, adequada. Penso que, nas suas linhas estruturais, definidoras, o ordenamento económico-social constitucional, de 1976, era correcto. Foram, precisamente, as mudanças estruturais, as nacionalizações, a reforma agrária, a participação dos trabalhadores, os aumentos salariais, a intervenção do Estado nas empresas em dificuldades que salvaram a nossa economia do colapso. Foi a falta do cumprimento, do ordenamento económico-social constitucional, foi a política neoliberal globalizadora, deliberadamente destrutiva desse ordenamento (privatizações, destruição da reforma agrária, cerceamento dos direitos dos trabalhadores, submissão às directivas da União Europeia, mercantilização da saúde, do ensino, da segurança social, etc.) que conduziram á presente situação. A mudança da correlação de forças políticas e sociais, civis e militares fez que não fossem consolidadas as conquistas da Revolução, e foi a origem dum processo contra-revolucionário que decorre há cerca de 28 anos. A mudança da correlação de forças teve múltiplas causas, entre as quais são de salientar: o agravamento da luta de classes; as divisões profundas dentro da esquerda do MFA; a persistência da ideologia burguesa e pequeno-burguesa entre a maioria dos militares e dos trabalhadores; os resultados das eleições para a Assembleia Constituinte. A Revolução de Abril terá sido, na Europa Ocidental, e depois da Comuna de Paris, a maior ofensiva contra o capitalismo. Penso que os sectores revolucionários da nossa população, civis e militares fizeram o que lhes foi possível fazer, dentro dos objectivos do Programa das Forças Armadas, e tendo em vista a correlação de forças existente no momento.

VT: – Na altura em que foi primeiro-ministro, teve a noção das movimentações de bastidores da diplomacia internacional no sentido de, de algum modo, traçar um rumo para a revolução portuguesa que fosse ao encontro dos vários interesses mundiais?

VG: – Sim.

VT: – Pergunto isto porque fui amigo do Francisco Costa Gomes Jr. – o filho, já falecido, do Marechal Costa Gomes – que uma vez me contou alguns pormenores muito curiosos da visita do pai, enquanto Presidente da República, a Moscovo. Ao que parece, terá havido uma pressão clara de Brejnev no sentido de Portugal abandonar a via socialista, que seria um projecto contrário à política de "coexistência pacífica" acordada tacitamente entre as duas super-potências. Soube disso?

VG: – Soube, sim, da opinião dos soviéticos.

VT: – E qual foi a sua reacção?

VG: – Essas opiniões dos soviéticos não tiveram influência nas nossas decisões. Não foram novidade para nós, que fazíamos ideia das relações de força a nível internacional, e da existência da guerra-fria, a que já fiz referência quando falei do processo histórico do 25 de Abril.

VT: – Dos líderes mundiais que conheceu nessa altura, havia algum em quem verdadeiramente confiasse?

VG: – Conheci, fugazmente, um número reduzido de dirigentes de países da NATO, por ocasião de uma reunião, de chefes de Estado e de Governo, em Bruxelas. Naturalmente, não podia confiar em ninguém.

VT: – Calculo que se mantenha atento ao que vai acontecendo pelo mundo. Concorda que estamos numa fase preocupante de retrocesso social e político a nível global?

VG: – O modo de produção capitalista, em consequência da sua própria essência, das leis do seu desenvolvimento, das condições necessárias à sua reprodução e perpetuação, conduziu à globalização neoliberal. Esta política, comandada pelos Estados Unidos da América, sustentada pela sua força militar e dos seus poderosos aliados da NATO, embora com contradições internas e externas, procura impor-se a todo o mundo. Será possível que a acção consciente e organizada dos trabalhadores e dos povos seja capaz de criar condições para pôr fim a esta ofensiva global do capital e substituir a sociedade capitalista por uma sociedade mais justa, a socialista? Ao contrário do que pode parecer, o capitalismo está em crise. Mas a crise do capitalismo, hoje, é estrutural e não conjuntural. Por isso, o sistema procura impor a todo o mundo a globalização neoliberal, como fase final e definitiva da sua evolução história. Contudo o capitalismo não é reformável, porque as relações sociais em que se baseia e sem as quais não pode sobreviver, são intrinsecamente contraditórias, injustas e de exploração do homem. O novo imperialismo planetário necessita do controlo dos recursos naturais e das guerras "preventivas" e de "intervenção humanitária" para garantir a sua dominação e superar as suas fraquezas económicas intrínsecas. O capitalismo necessita da guerra, da fome e da miséria para milhares de milhões de pessoas. Com a guerra e a destruição do ambiente, põe em perigo a própria sobrevivência da humanidade. Por isso, se coloca, hoje, no horizonte histórico do homem, a necessidade de travar a actual ofensiva do capitalismo neoliberal e de o substituir por um a sociedade orientada para a construção do socialismo. Por estas razões se coloca, hoje, na perspectiva histórica do homem a alternativa "socialismo ou barbárie". Como diz o filósofo húngaro-britânico Istvan Meszaros: "A terceira fase, potencialmente a mais mortal, do imperialismo hegemónico global, que corresponde à profunda crise estrutural do sistema do capital no plano militar e político não nos deixa espaço para tranquilidade ou certeza. Pelo contrário, lança uma nuvem escura sobre o futuro, caso os desafios históricos postos diante do movimento socialista não sejam enfrentados com sucesso enquanto ainda há tempo. Por isso, o século à nossa frente deverá ser o século do 'socialismo ou barbárie'."

VT: – A implosão da União Soviética surpreendeu-o?

VG: – Sim.

VT: – Como vê a conversão dos russos ao capitalismo?

VG: – Penso que a palavra "conversão" não é a mais adequada à mudança que houve e há na Rússia. O movimento socialista sofreu uma muito grave derrota. Contudo, o grande desafio histórico do futuro continua a ser a superação do capitalismo pelo socialismo.

VT: – Que leitura faz da reeleição de George W. Bush como presidente dos EUA?

VG: – Penso que se vai acentuar a política de dominação planetária da mais forte potência militar que jamais existiu sobre a terra. Ao mesmo tempo estão surgindo em todo o mundo movimentos contra a guerra e de resistência anti-imperialista cuja frente principal se localiza no Médio Oriente e na Ásia Central, no Iraque, no Afeganistão, na Palestina. Esta resistência tem contrariado os planos do governo norte-americano de futuras agressões à Síria e ao Irão.

VT: – Diz-se que "o poder corrompe e que o poder absoluto corrompe absolutamente". O senhor general, que passou pelo poder e deixou uma marca tão funda na história deste país, acha que é mesmo assim?

VG: – Não. O poder em si não corrompe. Os homens é que se corrompem ou são corrompidos. Devemos ter presente a existência duma sociedade de diferentes classes sociais, algumas das quais, com interesses antagónicos entre si, interesses incompatíveis. Tenhamos presente a luta de classes, a posição dos indivíduos em relação aos interesses de classe, e em relação à honra, à dignidade, ao patriotismo, à consciência política e social. Todas estas são condições objectivas e subjectivas que influem no comportamento dos indivíduos que ocupam posições no âmbito do poder político.

VT: – Trinta anos passados sobre o Verão Quente, sente que cumpriu o seu dever?

VG: – Sim. Cumpri o meu dever para com o nosso povo e para com o Movimento das Forças Armadas.

VT: – Como reage quando ouve falar do "gonçalvismo"? Existiu tal coisa?

VG: – No livro de Carlos Coutinho, Companheiro Vasco , nas páginas 45 a 57, essa questão está tratada extensamente. Da página 45 e em resposta a uma pergunta idêntica à sua, passo a citar: "O gonçalvismo foi inventado para se utilizar o anti-gonçalvismo, como uma arma da guerra psicológica, como uma arma da tenaz luta, política e ideológica, que a burguesia portuguesa trava contra as classes trabalhadoras e seus aliados objectivos e potenciais, no sentido de bloquear o processo revolucionário, recuperando-o para o capitalismo. O anti-gonçalvismo, do ponto de vista da guerra psicológica e da luta ideológica, é um contraditório conjunto de mentiras, calúnias e invenções relativas às acções desenvolvidas no período mais criador da revolução. É a deturpação total da política dos II, III, IV e V Governos Provisórios, em particular do IV e V. Do ponto de vista político (o anti-gonçalvismo) é um conjunto de acções cujo objectivo é a recuperação capitalista".

VT: – Se pudesse voltar atrás, o que é que fazia de diferente? Alguma vez se arrependeu?

VG: – Penso que nas suas linhas gerais, definidoras, o ordenamento constitucional de 1976, que consagra as conquistas democráticas alcançadas no período mais criador da revolução, era correcto. Foi a falta do seu cumprimento, a política deliberadamente destruidora desse ordenamento, coberta por sucessivas revisões constitucionais que conduziu à situação actual. Mas devemos reconhecer que não houve base de apoio social e político para garantir o cumprimento do ordenamento constitucional, o que tem permitido as sucessivas revisões constitucionais que alteraram, profundamente, a organização económico-social institucionalizada na Constituição de 1976. Nas suas linhas mestras, definidoras, não voltaria portanto, atrás em matéria de conquistas democráticas e revolucionárias.

VT: – No seu discurso de tomada de posse como primeiro-ministro, em 74, citou Almeida Garrett, dizendo que a liberdade só se aprende com a prática. O que lhe ensinou a prática da liberdade?

VG: – A liberdade não se define ou não se consubstancia, apenas, nos direitos políticos, no direito de poder falar livremente, no direito de opinar e contestar ou de se organizar colectivamente sem ser preso. A liberdade não existe de per si. São necessárias estruturas políticas, económicas, sociais, culturais que garantam o exercício das liberdades consagradas na Constituição. O desemprego, a miséria, a fome, a falta de instrução, a falta de habitação, as relações sociais de exploração são contrários ao exercício livre da liberdade. Porque a liberdade não diz respeito, apenas, à liberdade política. Mesmo esta tem condicionamentos económicos e sociais, culturais e até, ambientais. Por exemplo, o novo código de trabalho, as novas leis aprovadas em 2004 nos domínios da segurança social, da saúde, da educação, do arrendamento urbano, limitam claramente as condições de vida das pessoas, a sua formação e independência material e espiritual, a sua formação cultural, o acesso à justiça social. Têm uma influência decisiva sobre a igualdade de oportunidades, condição indispensável para o exercício das liberdades. Outro exemplo: o domínio dos meios de comunicação social de maior difusão pelo sistema do capital. A desinformação deliberada influencia negativamente a formação cultural, a formação da consciência social e política dos cidadãos, e, consequentemente, o exercício do direito à liberdade.

VT: – O mundo unipolarizou-se, os valores inverteram-se. Ainda há algo porque valha a pena lutar?

VG: – A resposta a esta pergunta está em grande parte contida no que lhe disse há pouco. Devo acrescentar: a ciência e a tecnologia são utilizadas, sistematicamente, permanentemente, como meios para a superação da crise estrutural do sistema do capital, com consequências dramáticas para o meio ambiente, colocando em risco a própria continuidade da vida humana na terra, tal como se conhecem hoje. Um recente e extenso estudo sobre as consequências da subida geral da temperatura no planeta mostra que a mudança de clima nos próximos 50 anos conduzirá à extinção de um quarto dos animais e plantas terrestres. A perda de uma em cada dez espécies de plantas e animais já é irreversível devido ao aquecimento global provocado pelos gases já descarregados na atmosfera. A gravidade da situação é tal que a revolução científico-técnica não pode adiar indefinidamente a explosão das contradições antagónicas e insanáveis do sistema. Impõe-se, pois, a luta contra o neo-liberalismo e contra as guerras que o mesmo desencadeia. Nestas condições tão difíceis e tão exigentes para cada um de nós, a missão que se põe às forças democráticas e progressistas no nosso país (como no mundo) é o trabalho empenhado, denodado, persistente, quotidiano, inteligente, pela consciencialização política e social do nosso povo para a efectiva participação na construção do seu próprio futuro. As lutas nacionais não devem ser desligadas das acções internacionais. Só a luta sobre a base de problemas concretos, procurando mobilizar consciências e corações, estimular a disponibilidade para a acção ao longo da qual se promoverá a participação e a intervenção populares em todos os domínios da vida da sociedade, poderá conduzir o homem a que seja sujeito do seu próprio futuro. Há algo porque vale a pena lutar.

VT: – Está disponível para participar num novo 25 de Abril?

VG: – Muitas vezes se faz essa pergunta, de há quase 30 anos para cá. As condições históricas, objectivas e subjectivas, as situações são irrepetíveis. A pergunta significa, para mim, se continuo confiante no valor, na capacidade transformadora, das ideias do 25 de Abril, uma vez tomadas pelo nosso povo. Continuo. Penso que os caminhos de Abril continuam bem actuais para a construção duma sociedade de justiça social no nosso país.

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[*] Esta entrevista faz parte do livro "Contas à Vida – Histórias do Tempo que passa", de Viriato Teles ( http://viriatoteles.com.sapo.pt ).

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Parabéns “Companheiro” Vasco

Lisboa, 3 de Maio de 1921 — Almancil, 11 de Junho de 2005


PROVAVELMENTE

não terei a força, o verbo, o tamanho para falar duma revolução que rebentou no coração daqueles que, desde o primeiro vagido, a desejaram.
PROVAVELMENTE
esquecerei nomes, trocarei datas, falarei dos heróis que o não foram e dos cobardes que tiveram a coragem de não puxar gatilhos, de permanecerem poetas e não matarem ainda que com essa negação da morte ficassem com os corpos presos, que a alma não.
PROVAVELMENTE
louvarei demasiado os que me são queridos, cantarei as paisagens onde nasci e chegarei mesmo ao despudor de gritar que o Alentejo é o mais lindo país do mundo, que uma papoila vermelha floresce diariamente nos dedos dos que trabalham a terra.
PROVAVELMENTE
deixarei nas margens deste recado essoutros que em Marços e Setembros sairam para a rua agarrados à estrela da manhã para com ela (somente com ela) defenderem a liberdade.
PROVAVELMENTE
não saberei pronunciar os nomes das crianças que num mês de Abril inventaram novos símbolos debruaram de cravos as redacções escolares, as paredes do jardins, os troncos dos abetos, e inundaram com as aguarelas da ternura os olhos dos homens cansados.
PROVAVELMENTE
e porque não? direi que vi soldados vestindo a farda que o povo usa, essa camisa lavada e branca dos nossos irmãos operários, camponeses, trabalhadores de todos os misteres.
PROVAVELMENTE
trocarei as notas à melodia que semeou o luar, desvirtuarei a cor da baioneta que defendeu o sol, não saberei agarrar o espanto das mãos que seguravam o vento como quem agarra essas bandeiras de carne a que chamamos filhos.
PROVAVELMENTE
não citarei nomes de capitães, dragonas de almirantes, siglas de partidos, as multidões dos comícios, as cores dos panfletos, o eco dos gritos que rebentaram a veia tensa deste quase meio século que sufocou o pulmão da nossa Pátria sempre adiada.
PROVAVELMENTE
só vos falarei dum Homem com rosto de homem, palavra de homem, o gesto simples do Homem simples e sincero que todos esperámos na lonjura da esperança, como o Criador esperou o nascimento do mundo.
PROVAVELMENTE
escreverei: Vasco Gonçalves.
PROVAVELMENTE
acrescentarei:
— Por aqui passou um Homem !

EDUARDO OLÍMPIO
Fevereiro de 1976

Participação na Manifestação do 1.º de Maio em Lisboa, promovida pela CGTP-IN