Textos periódicos III - LEMBRANDO UM CRIME CONTRA ABRIL
A propósito do livro de Daniela Costa
“Uma bomba a iluminar a noite do Marão”
(Edições Afrontamento, Porto)
Jorge Sarabando
Há 44 anos, um atentado bombista matou dois jovens transmontanos na flor da vida: Maximino de Sousa e Maria de Lurdes Correia. Foram vítimas do ódio político. O Padre Max, assim conhecido na comunidade, era tido como um Padre com ideias comunistas, e a Maria de Lurdes era uma jovem estudante, alegre e espontânea, a quem dera boleia.
Tratou-se de um crime político, planeado e executado por um comando da rede terrorista da extrema-direita, com apoios locais, que aconteceu numa fase já declinante do processo revolucionário, justamente em 2 de Abril de 1976, dia em que o Presidente da República, General Francisco da Costa Gomes, promulgou a Constituição, no momento seguinte à sua votação final.
O golpe de 25 de Novembro acabou com a fase mais criadora da Revolução. O Governo e a Assembleia Constituinte continuaram em funções, mas havia forças que pensavam poder ainda reverter o curso da História. O período entre Novembro de 75 e Abril de 76 foi dos mais violentos e mortíferos, tendo sido cometidos 97 atentados bombistas. Lembro o assassínio a tiro, na própria noite de 25 de Novembro, do operário vidreiro e sindicalista António Almeida e Silva, numa rua do Porto, a morte de Rosinda Teixeira, em Santo Tirso, de duas pessoas da Embaixada de Cuba, de um cidadão junto do CT Vitória, do PCP, em Lisboa, vítimas de explosões, sem esquecer, noutro quadro, a morte, por disparos da GNR, de quatro pessoas, numa pequena multidão que se manifestava pacificamente, no final do ano, junto à cadeia de Custóias, onde estavam detidos militares de esquerda, acusados de envolvimento no 25 de Novembro. Foi nessa época que ocorreu o atentado bombista na Câmara Municipal de Vila Real, que por pouco não atingiu o Presidente da Comissão Administrativa, Rogério Fernandes, conhecido militante do PCP e amigo do Padre Max. Foi na mesma altura que uma bomba destruiu o carro do médico de Chaves Maximino Cunha. O crime infame que vitimou o Padre Max e a estudante Maria de Lurdes não foi um caso isolado.
Um dos méritos do livro de Daniela Costa é o de mostrar o outro lado da História, para além dos números, dos factos e da sua interpretação. São as pessoas, os seus sonhos, as vivências, as emoções, os desejos, os conflitos, o sofrimento, o enfrentamento de interesses, o entorno social, o caldeio de lutas, a miséria moral e a grandeza humana, os acasos e as causas, o encanto e o desencanto, a sordidez dos actos e a beleza da vida, a inquietação, a magia, o mistério, o egotismo e a generosidade e o amor em dádiva, tudo isto, e muito mais do que isto, flui na leitura de um texto que transcende o tempo e o lugar.
Outro mérito advém do modelo narrativo. A voz da autora desdobra-se em outras vozes, todas elas com densidade própria, coloração, respiração, e uma autenticidade que nos transporta às fragas do Marão e às lonjuras, ao cheiro da terra, e aos socalcos do Douro, lá onde a mão humana esculpiu a paisagem. Uma escrita com rara mestria que permitiria mesmo uma expressão cénica pois, uma a uma, em diferentes registos, como que se apresentam num proscénio.
Logo de início uma primeira figura, antecedendo as demais, assim fala: “Os meus dedos grossos de trabalho e velhice arranham-me as maçãs do rosto de cada vez que enxugo estas lágrimas que não me deixam”. E com isto se anuncia o dramatismo da acção.
Em outras falas se cruzam palavras como sonho, fuga, liberdade, que lembram aquele verso de Torga “ grandes serras paradas à espera de movimento”. E com isto se define a essência de uma contradição: a fixidez, a imobilidade do que está, e a mudança a que se aspira.
Outra figura diz detestar um quadro torto e uma sala desarrumada. E com isto revela a fonte do desajustamento que o incomoda: não é a desordem das coisas mas sim a desordem das pessoas que não aceitam a perpetuação das desigualdades.
As figuras sucedem-se cada uma com o seu testemunho. Sempre ausentes e sempre presentes lá estão o Padre Max e a Maria de Lurdes através das palavras de quem os conheceu, e amou ou odiou.
Lá vem aquela suposta avó, mulher do campo digna, honesta, carinhosa, a quem os filhos emigrantes permitiram uma vida melhor na cidade, e que tanto estimava o seu hóspede Padre Maximino.
Lá vêm os colegas da Lurdes e alunos do Padre Max, a quem este apoiava com aulas gratuitas para poderem prosseguir os estudos.
Lá vêm os sacerdotes amigos de Max, um mais compreensivo, outro mais distante.
Lá vem o prelado com suas blandícias, espelhando as contradições da Igreja.
E o cacique de direita e suas más companhias.
E o grande proprietário do Douro a quem um dia as trabalhadoras reclamaram o justo pagamento.
E uma colega que juntava a altura da sua condição social à baixeza dos seus sentimentos.
E o filho família, de raiva exposta e verbo radical, um tanto aventureiro.
E o activista sindical da UDP que lutava na empresa por melhores salários.
E gente da rede terrorista e dos interesses de classe que serviam.
E o advogado, corajoso e persistente, que não deixou cair o caso na obscuridade.
E personagens luminosas, por ideais e afectos, e outras sombrias, pela trama de ódios e violências.
Uma a uma chegam ao proscénio e falam, os discursos não se cruzam mas vão construindo um quadro. Os percursos pessoais, as relações humanas, onde não falta um enredo amoroso e, em fundo, o eco de lutas sociais, pela devolução dos baldios aos povos, pela justa paga do trabalho nas vindimas e na apanha da azeitona, ou em torno da Gestão da Casa do Douro.
Foi a época das grandes manifestações, como a que foi organizada pela Igreja, com pretexto no caso da Rádio Renascença, mas que, talvez por diligências do PCP, designadamente junto do Bispo, e um Apelo dirigido aos cristãos de Vila Real, não causou violências, como, entre outras cidades, aconteceu em Braga, onde o Centro de Trabalho foi destruído.
Ou a manifestação em Lamego contra os militares do MFA da Comissão de Gestão da Casa do Douro. “Nem Cunhal nem Pardal” era o grito de guerra de uma multidão arrebanhada pelos caciques e que chegou à Assembleia Constituinte pela voz de um deputado da região.
Cenas da luta de classes em Trás-os-montes, dir-se-á. O livro de Daniela Costa é isto, mas é muito mais do que isto, porque tem o dom da boa literatura: desde início a leitura nos prende e logo nos transporta e nos situa num outro mundo, e nos coloca dentro de uma história, como se tivéssemos também conhecido e convivido com o Padre Max, um jovem bom, generoso, um cristão convicto, um homem de fé.
Falámos das vítimas, falemos agora da rede terrorista a que já nos referimos, responsável por 566 actos violentos, entre Maio de 75 e Abril de 77, entre os quais 310 atentados bombistas e 194 incêndios e assaltos, tendo como alvo forças de esquerda e o movimento sindical.
Quem a constituía? O ELP, o MDLP, a rede Maria da Fonte e outras organizações congéneres, que tinham como base logística a Espanha franquista, onde actuavam com nomes de fachada como a empresa Tecnomotor ou a Fundação Nossa Senhora de Fátima. Uma das melhores fontes para conhecer este mundo sórdido é o livro de Maria José Tíscar “A contra-revolução no 25 de Abril” (edições Colibri).
Quem a dirigia? Inicialmente antigos dirigentes da PIDE como Barbieri Cardoso e Cunha Passo, ou o inspector Meneses Aguiar ou o legionário Rebordão Esteves Pinto, a que se juntou depois a corte spinolista que fugiu para Espanha, após o golpe falhado de 11 de Março.
Quem eram os efectivos? Antigos agentes da PIDE e legionários, alguns colonos inconformados, mercenários, fascistas convictos, gente a mando dos caciques, um certo lumpen de fácil recrutamento.
Quem os financiava? Banqueiros e grandes empresários que nunca aceitaram o 25 de Abril e muito menos o rumo socialista que tomou e veio a ser consagrado na Constituição, além de conhecidas agências de países da NATO.
Os crimes foram punidos? As primeiras prisões são do verão de 76, efectuadas pela Directoria do Porto da Polícia Judiciária, mas poucos foram os autores morais e materiais presos e menos os condenados. Em geral beneficiaram de uma teia de cumplicidades que lhes permitiu encontrar boas soluções de vida, e alguns vieram até a ser distinguidos pelo poder político emergente.
Houve mesmo quem publicasse livros em que se gaba dos seus feitos. Foi o caso de um tal Manuel Gaspar, de quem o jornalista Ricardo Saavedra escreveu as memórias (O Puto, edições Quetzal). Depois de ter participado no golpe racista de 7 de Setembro de 74 em Moçambique, donde era natural, e na marcha até Luanda com as forças sul-africanas que tentavam impedir a independência de Angola em 11 de Novembro, sob a direcção do MPLA, desembarcou em Portugal, onde logo entrou ao serviço da rede terrorista. É um dos participantes confessos no assassínio do Padre Max e da Maria de Lurdes que, nas pgs, 337 a 340, descreve com detalhe. É um relato impregnado de cinismo onde defende, como é habitual nestes casos, que a intenção não era matar mas apenas assustar. Começa, com certo gáudio, a descrever a cena em que “à hora certa”…”lá vinha Maria de Lurdes, toda fresca e radiante nos seus dezoito ou dezanove anos”, para terminar explicando as mortes: “Só que o destino do casal, infelizmente, estava traçado, e contra o destino não há planos que resistam”. Por curiosidade se acrescenta que o indivíduo esteve preso em Alcoentre, por outras acusações, donde fugiu passado pouco tempo.
No mesmo livro se transcreve um artigo do jornal fascista A Rua, de 8 de Junho de 77, onde se fazia a afirmação de que a Maria de Lurdes estava “grávida de 3 meses”, que ficou provado, mais tarde, ser uma abjecta calúnia.
O fascismo não é coisa do passado, está de regresso e em força. Há uma direita tradicional, que se move no campo democrático, que tem da violência fascista uma visão instrumental pelo que possa ser útil para os seus interesses de classe. Tende a contemporizar ou condescender porque teme, acima de tudo, o ascenso revolucionário que a crise do capitalismo possa gerar nas classes trabalhadoras. A grande burguesia, a alta finança, têm com as organizações fascistas laços de cumplicidade e mesmo vínculos orgânicos, muito resguardados. Como aconteceu nos anos 20 e 30 com os resultados conhecidos. Como aconteceu em Portugal nos anos da Revolução. Como hoje vai acontecendo na Europa ou no continente americano.
O livro de Daniela Costa, para além do valor literário que tem, é um contributo mais para conhecer a revolução e a contra-revolução no Portugal de Abril.
É a memória que nos constrói, como cidadãos livres numa democracia plena.
Jorge Sarabando
2020 Abril