Caros
Amigos, Camaradas,
Alguém
disse um dia que Vasco Gonçalves era um Homem
de Verdade e da Verdade.
Todos
nós sabemoscomo este simples vocábulo está tão desvalorizado, principalmente nestes
tempos em que impera o deus mercado e a religião do dinheiro, da corrupção e do
nepotismo é negóciopróspero para as classes dominantes.
E,
no entanto, falar hoje do Homem de verdade que foi o General Vasco Gonçalves é
redescobrir a palavra e compreender em toda a sua complexidade a natureza, os princípios
e as características que enformam toda uma vida de autenticidade e de dedicação
à pátria e ao seu povo.
Sobre
a dimensão histórica deste extraordinário militar de Abril, outros camaradas
aqui presentes se pronunciarão com mais conhecimento, talento e rigor. Como sindicalista,
simplesmente quero aqui deixar testemunho, nesta merecida homenagem a Vasco
Gonçalves, quanto relevante para o futuro dos trabalhadores, do povo e do país,
foi o seu papel enquanto primeiro-ministro do II ao V governos provisórios e, também
desta forma, honrar a memória deste companheiro que nunca abandonou os ideais
do socialismo, nunca traíu os que nele confiaram, nunca desistiu de lutar pelas
transformações políticas, económicas e sociais que tirassem Portugal dos
atrasos acumulados em meio século de ditadura fascista e doze anos de guerras
coloniais. Pelo contrário, homem de coragem e de grande carácter, mesmo nas
fases mais críticas do processo da revolução portuguesa permaneceu sempre nas
primeiras linhas do combate.
A
humanidade de Vasco Gonçalves, os valores éticos que perfilhava, a disciplina
revolucionária que orientava a sua acção patriótica estão presentes neste breve
trecho do brilhante discurso que proferiu na Academia Militar, no início de
Dezembro de 1974, sobre as relações entre os militares e a vida política.Disse
o General aos seus pares: «A disciplina exterior deve ser consequência da
disciplina interior. Doutro modo não é disciplina. No meu tempo cultivava-se
muito a disciplina exterior. É necessário que os oficiais andem bem
uniformizados, bem engraxados, com os botões limpos. Mas é muito mais
necessário que andem com as consciências tranquilas e senhores dos seus deveres
para com a Pátria. (…) E no meu tempo havia gente que dava relevo às botas em
relação à consciência. (…) O homem antes de ser militar é um cidadão. Todo o
cidadão é político. Essa coisa de se dizer que os militares são apolíticos é
falsa. (…) Tenham uma grande confiança, não obstante todas as dificuldadesque
temos, todos os inimigos que temos. Tenham uma grande confiança no futuro da
nossa Pátria, porque está a ser forjada por todos nós, e isso é necessário que seja
feito, que a Pátria possa ser forjada por todos os portugueses»
Estas
palavras e Vasco Gonçalves tinham plena justificação uma vez que a revolução de
Abril, sendo uma obra colectivadas forças democráticas que combateram o
fascismo, foi desde início o alvo da conspiraçãocontra-revolucionária. Nesta
conspiração participaram os sectores neocolonialistas instalados nas forças
armadas, em aliança com as forças reaccionárias onde se agruparam os grupos
monopolistas e os grandes latifundiáriosrepresentadas pelos partidos de direita
nos governos provisórios,os quais se serviram da pesada herança deixada pelas
estruturas fascistas para sabotarem economicamente as empresas, promoverem a
fuga de capitais para fora do país e desestabilizarem o curso da revolução.
Mas a
contra-revolução obteve, ainda, o apoio decisivo de outras forças,de cariz
social-democratizante, como foi o caso do partido socialista que, não comparecendoàs
etapas importantes da luta antifascista, veio a assumir no período
pós-revolução, a direcção da política de recuperação capitalista.
Apesar de todas as manobras
conspiratórias, foi durante os quatro governos presididos por Vasco Gonçalves
que se operaram as grandes transformações: no plano político, procedeu-se à
descolonização e à democratização do país, com a conquista das liberdades
públicas (de imprensa, de associação, de reunião, de manifestação) e da
organização democrática do estado; ao nível económico, com as nacionalizações,
o controlo de gestão e a reforma agrária; no âmbito social, com importantes
direitos laborais e sociais conquistados pelos trabalhadores, como são exemplos o estabelecimento
do salário mínimo, o subsídio de férias e o subsídio de Natal e,
também, com as reformas que definiram as grandes obrigações sociais do Estado:
um sistema de segurança social destinado a proteger os cidadãos na doença,
velhice, invalidez, viuvez e orfandade; um serviço nacional de saúde,
universal, geral e gratuito; uma política de habitação para assegurar a cada
família uma habitação condigna; uma escola pública, no sentido de garantir o
acesso ao ensino básico, obrigatório e gratuito.
A
revolução de Abril também operou uma profunda revolução cultural, pondo fim a
décadas de um regime obscurantista e retrógrado. Com a instauração das
liberdades e a intervenção dos
intelectuais e das massas populares na construção de uma vida nova, abriu-se
caminho à alteração das mentalidades, ao desenvolvimento cultural e à afirmação
de valores humanistas.
Todas
estas realizações foram aprovadasna Assembleia Constituinte. Inspiradas no
Programa do MFA, ainda hoje identificam a matriz criada com o 25 de Abril, e a
sua consagração no texto Constitucional, apesar das mutilações de que tem sido
alvo pelos inimigos confessos da revolução, constitui testemunho da força que continuam
a ter no coração dos trabalhadores e do povo, sendo justamente chamadas Conquistas
da Revolução.
Importa,
no entanto, ter presente que no quadro complexo das relações das forças
político-militares representadas no governo e outras instâncias do poder
político e militar provisório, a acção convergente das massas populares com os
militares revolucionários foi determinante para a evolução do curso
revolucionário. A Aliança Povo-MFArevelou-se, neste caso, como mais uma singularidade
de extraordinária importância no processo revolucionário em Portugal.
Vasco Gonçalves, primeiro-ministro, sofreu
injúrias efoi sujeito a intimidações e ultimatos. O ódio dos
capitalistas e latifundiários contra os defensores da revolução era tão grande
que, organizados em torno das organizações contra-revolucionárias da CAP, da
CIP, do ELP, apoiadas logística e operacionalmente pela CIA, perpetraram
inúmeros actos terroristas no país. Precisamente no mesmo dia de hoje, em 30 de
Junho de 1976, a sede da Intersindical foi também alvo de um atentado bombista.
Mas Vasco Gonçalves, homem corajoso, não abandonou o seu posto de combate nem fugiu
ao confronto, enfrentou destemidamente os golpistas do 28 de Setembro e do 11
de Março, manteve-se sempre do lado certo, sempre ao lado dos trabalhadores e
do seu povo.
Álvaro Cunhal, na sua obra “A verdade e
Mentira na Revolução de Abril – a contra-revolução confessa-se”, escreve:
«Vasco Gonçalves era particularmente visado. A reacção não lhe perdoava ser
coerente e corajoso e ter desempenhado importante papel para as derrotas das
forças reaccionárias, para a conquista das liberdades e da democracia».
O próprio General, em entrevista ao
“militante”, de Abril de 1999, depois de lhe ter sido perguntado como foi
possível concretizar, nesse quadro tão explosivo, avanços tão extraordinários,
responde desta maneira: «O contexto era o do Povo-MFA. Havia a necessidade
imperiosa de fazer a descolonização contra os obstáculos levantados pelas
facções neocolonialistas. Vivíamos um clima de sabotagem e oposição dos meios
económicos dominantes: tinham perdido o poder político, mas mantinham o
económico, facto que lhes permitia desorganizar a actividade económica,
promover a fuga de divisas, o desemprego, etc., lutar de várias formas contra a
nova ordem democrática».
Vasco Gonçalves tinha, na verdade, uma
ideia muito clara de que as transformações sociais e as conquistas
revolucionárias só seriam possíveis pela luta dos trabalhadores e acção
determinante das massas populares. Homem culto e de elevada consciência de
classe, conhecedor do papel histórico dos trabalhadores e do movimento sindical
português no desenvolvimento das lutas reivindicativas e da contestação à
ditadura, o General compreendia que esta era a força motora da revolução, na
base da qual se poderiam superar as contradições existentes no aparelho
político-militar e avançar no processo revolucionário, através da acção
conjugada das massas populares e do Movimento das Forças Armadas.
Na
realidade, quer o levantamento popular, logo após o golpe militar, quer as
gigantescas manifestações unitárias do 1º de Maio de 1974 convocadas pela Intersindical no curto
espaço de uma semana, deram expressão à imensa força autónoma e independente do
movimento operário e popular, afirmando-o como uma poderosa realidade da vida
nacional à qual estava reservado um papel determinante no curso da revolução
portuguesa.
Entretanto,
perante a tentativa de alguns escribas em reescrever a História, é preciso lembrar
que esse papel desempenhado pela classe operária e o movimento popular é
inseparável do seu percurso de décadas de duras lutas sociais e políticas contra
o regime fascista e, é Inseparável também, da furiosa campanha que ontem, como
hoje, foi e é lançada contraas forças progressistas e revolucionárias que se
identificam, apoiam e lutam pelo reforço da unidade da classe operária e de
todos os trabalhadores.
Mas
a confiança e esperança que Vasco Gonçalves depositava na acção criadora das
massas trabalhadoras, pode ver-se, também, no apelo sobre o papel destes na
batalha da produção, apelo publicado em 7 de Maio de 1975 no órgão informativo
da Intersindical Nacional, no Jornal “Alavanca”: «Estes obstáculos que vencemos
ensinam-nos muita coisa. Principalmente, que cada dificuldade que se nos
depara, depois de vencida, é um passo em frente que damos: nós avançamos
combatendo os nossos inimigos. Foi o vencer-se a crise Palma Carlos que criou
condições para o reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e
independência, facto que trouxe de imediato, ao Povo Português e aos povos das
antigas colónias, o fim da guerra. Foi ovencer-se o 28 de Setembro que
estreitou a aliança Povo-MFA, criando condições para uma maior clarificação do
processo revolucionário.(…)Foi o vencer-se o 11 de Março que deu novo impulso à
revolução, levando a nova Assembleia do MFA, reunida nessa noite, com a
presença de oficiais, sargentos e praças, a abrir caminho para as grandes
medidas que se seguiram: Instituição do MFA, criação do Conselho da Revolução,
decisão da nacionalização da Banca, dos Seguros e sectores básicos da nossa
economia, início da reforma Agrária e definição da opção Socialista para a
Revolução Portuguesa. (…) O 11 de Março criou também condições mais favoráveis
ao Povo Português no campo político e económico, condição para que, como diz o
Conselho da Revolução, “os trabalhadores sintam que a economia já não lhes é
estranha, ou seja, que a construção socialista da economia é tarefa deles e
para eles. Isto implica a afirmação clara do princípio do controlo organizado da
produção pelos trabalhadores para objectivos de produção e eficiência,
coordenadas pelos órgãos centrais do planeamento. (…) Estamos caldeados pela
luta, como acabamos de ver, e não são as dificuldades que nos metem medo, pois,
ultrapassadas que sejam, andamos para a frente».
Era, assim, o companheiro Vasco. Homem
vertical que esconjurava a pseudo-neutralidade, de uma pureza sem igual que o
levava a dizer com absoluta sinceridade que «…a maior alegria da sua vida tinha
sido participar no 25 de Abril e viver aqueles momentos como primeiro-ministro».
A exaltação de Vasco Gonçalves por ter
protagonizado um dos mais belos períodos da nossa História recente, está na
razão inversa dos ódios lançadas por todos aqueles que,conspirando contra as
conquistas sociais e as transformações
económicas em curso, o caluniaram de aventureiro. Do mesmo modo, aliás, que
também caluniavam a acção das forças revolucionárias, nomeadamente os
comunistas e a Intersindical, a quem acusavam de voluntarismo revolucionário. A
falsidade destes ataques mostra, afinal, como foi certeira e bem dirigida ao coração
do grande capital nacional e imperialista a acção revolucionária de
desmantelamento da base económica da ditadura.
De facto, as
nacionalizações, tal como o controlo operário e a gestão das empresas pelos
trabalhadores, surgiram não apenas como uma necessidade de defender e dinamizar
as actividades económicas paralisadas ou comprometidas pela sabotagem dos inimigos de classe mas, também, como uma
necessidade para defender as liberdades e a democracia que estavam em processo
de instauração, perante a agudização da luta de classes.
À
nacionalização da Banca logo na noite de 13 para 14 de Março de 1975, como
resposta ao comprometimento directo no golpe do 11 de Março dos grandes
capitalistas e agrários, seguiram-se a nacionalização de outros importantes
sectores e empresas da economia – seguros, electricidade, petróleo e
petroquímica, siderurgia, cimentos e vidro, pirites, adubos, construção naval,
transportes terrestres, marítimos e aéreos, entre outros. No final de 1975 o
número de empresas nacionalizadas era cerca de 250, a que se juntavam outras
tantas que estavam sob intervenção do Estado.
No discurso
que dirigiu aos delegados ao Congresso dos Sindicatos, realizado em Julho de
1975, Vasco Gonçalves mais uma vez enaltece a iniciativa dos trabalhadores no
processo das nacionalizações e salienta o valor da unidade como um princípio
fundamental para a defesa dos seus interesses de classe: «Esta luta é ume luta
de morte contra o capitalismo. As formas a que recorre o grande capital, quer o
nacional quero internacional, para travar este processo, são múltiplas. É
preciso ter uma actuação permanente. É preciso ter muita firmeza, espírito de
sacrifício, estar-se disposto a entregar-setotalmente à Pátria e ao Povo. Vós
tendes um papel fundamental a desempenhar como vanguarda dos trabalhadores.
Cada um de vós, quando sair daqui, deve ser um pólo de irradiação das ideias
que aqui foram expostas, um pólo de irradiação da vigilância popular. Deveis
combater intensamente o divisionismo nas vossas fileiras, E eu tenho uma grande
alegria por saber que este Congresso em decorrido sob o signo da unidade».
Amigos e
camaradas,
Procurei com
este modesto testemunho traçar um breve retrato de Vasco Gonçalves, do
enorme contributo que deu ao desenvolvimento do processo revolucionário, do
homem verdadeiro que até ao fim dos seus dias nunca desistiu ou renegou o seu
compromisso com os trabalhadores, com o povo, com a verdade.
Homem
lúcido, dizendo por vezes que estava ele próprio em permanente revolução, tinha
uma ética de tal modo irrepreensível que o levava a dizer também que, por amor
à verdade, reconhecia ser muito difícil uma pessoa despojar-se inteiramente da
sua condição de classe e interessar-se sem vacilações pelos problemas dos mais
desfavorecidos, dos mais pobres, ser coerentemente revolucionário até ao fim.
O mesmo
Homem generoso que muitos anos depois, mantendo-se coerentemente
revolucionário, disse que se não tivesse participado no 25 de Abril, se a queda
do fascismo lhe passasse ao lado, ficaria com um desgosto para toda a vida.
O exemplo de
Vasco Gonçalves deve inspirar-nos a continuar a luta.
É certo que
o processo iniciado a 25 de Abril foi uma revolução inacabada. A
contra-revolução travou o processo de desenvolvimento da sociedade portuguesa
visando o aprofundamento da democracia nas suas várias vertentes. A greve crise
económica que o país está hoje a viver, e as suas consequências no plano
político, social e cultural, resulta da ofensiva capitalista prosseguida pelos
sucessivos governos do PS, PSD e CDS/PP nos últimos 36 anos, assentes na
destruição dos sectores produtivos, no desaproveitamento dos recursos nacionais
e na alienação de empresas e sectores estratégicos. Esta ofensiva consubstancia
a posição ideológica de uma classe dominante que despreza e submete os
interesses de Portugal e do povo português aos interesses particulares dos
grupos económicos e financeiros, nacionais e estrangeiros.
A calamidade
do desemprego, que atinge mais de um milhão e 200 mil trabalhadores e
trabalhadoras, dos quais 800 mil estão a sobreviver sem qualquer protecção
social; a quebra brutal dos salários e o aumento insuportável do custo de vida,
das rendas de casa, que já pôs mais de três milhões de portugueses na extrema
miséria ou e situação de grave carência económica; o ataque feroz às funções
socias do Estado (Segurança Social, Saúde, Educação), visando o seu
desmantelamento e privatização, assim como a ofensiva contra o Poder Local
Democrático; as alterações da legislação laboral, com o objectivo de aumentar a
exploração dos trabalhadores e fazer diminuir ainda mais os salários, agravando
o empobrecimento das famílias, são consequência da política de direita levada a
cabo por aqueles partidos.
Só a ruptura
com o sistema capitalista pode impedir o prosseguimento desta política e evitar
mais destruição para o país e mais sacrifícios e miséria para o povo. A
experiência histórica mostra que o capitalismo está roído por contradições
insolúveis, que não consegue resolver os mais graves problemas da humanidade e
que agrava dia a dia a sua natureza exploradora, opressora e agressiva.
Saudando
e evocando a memória de Vasco Gonçalves, nós afirmamos que o socialismo
continua a ser a única alternativa histórica ao capitalismo e a mais válida
esperança da humanidade. Com esse objectivo, a grande questão da actualidade
política e do nosso futuro colectivo é a intensificação da luta pela exigência
de uma ruptura com apolíticade direita e a construção de um novo rumo para
Portugal.
Vasco
Gonçalves,foi o homem verdadeiro cujaparticipação decisiva na
Revolução de Abril ficará para sempre gravada na nossa História. Foi o Homem
que até ao fim dos seus dias nunca desistiu ou renegou o seu compromisso com a
verdade.
Saúdo a Direcção da Associação Conquistas
de Revolução por ter promovido esta justíssima homenagem a Vasco Gonçalves, ao
militar de Abril, ao soldado do Povo. Saúdo, também, a Voz do Operário pelo
apoio prestado à iniciativa.