UMA HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA ENTRE TANTAS, TANTAS…
Manuel Carvalho
Meu pai, republicano e anti clerical, como era comum
naquele tempo, devido a uma igreja desajustada no tempo, obscurantista, sentada
à mesa do ditador, nunca se opôs aos caminhos que eu poderia vir a trilhar.
Dizia ele que descobrisse por mim próprio.
Minha mãe, muito crente, acarinhava que eu e minha
“matilha” (como dizia o MEC) frequentássemos a igreja de Santa Maria, nos
Jerónimos, quando os meus pais residiam na freguesia do mesmo nome – Santa
Maria de Belém. O Pároco, desempoeirado, também nos acarinhava sempre, até com
um bom lanche aos sábados e passagem de filmes para crianças, nos claustros, e
não se importava nada que nós fizéssemos de cicerones no Mosteiro onde
ganhávamos umas moeditas. Por essas e por outras, não aqueceu o lugar, no seio
de uma igreja fechada.
Mais tarde, com a reforma antecipada do meu pai, por
doença incompatível com a sua função na Carris, fomos residir para a aldeia e
eu entretanto deixei de frequentar a igreja – já começava a pensar por mim
próprio – de tal maneira que vim a sentir o mau relacionamento instalado entre
mim e o Padre de Religião e Moral, na Escola Industrial, sem me aperceber
porquê.
Já no último ano do ensino secundário, viemos a ter um
novo Professor, Engenheiro, com o qual passávamos 10 tempos lectivos semanais
nas aulas principais daquele ano: Desenho de Máquinas, Tecnologia e Orçamentos
e Contas de Obras. Os tempos lectivos eram suficientemente sobrantes, para o
excelente desempenho do Engenheiro e então havia tempo para lhe colocarmos
muitas questões, com sejam sobre a Guerra Colonial – preocupação maior que nos
atormentava – sobre as relações também preocupantes e em crescendo entre Israel
e os Países Árabes ou sobre a luta do IRA, ou ainda sobre a postura da Igreja,
face a todos esses acontecimentos, questões estas que normalmente acabavam em
reflexões filosóficas sobre a humanidade, acrescentando mais uma disciplina a
ministrar pelo Engenheiro.
Mas um dia à saída da sala de aula encontrámos dois
tipos estranhos, junto à porta e o lúcido Engenheiro no ano seguinte teve que
mudar de Escola.
No ano seguinte, eu a frequentar a Escola de Máquinas
da Marinha, em Vila Franca de Xira, venho a encontrar o Engenheiro, onde ele
era agora professor na Escola Industrial da mesma Vila.
Encontrei-o num café, de dois pequenos pisos, próximo
da Câmara, café convidativo a conversas de “pé de orelha” sem ouvidos
duvidosos, por perto. Ele ficou muito admirado ao ver-me ali uniformizado de
marinheiro e questionou-me porque não me tinha candidatado ao Instituto
Industrial, porque achava que tinha condições para tal. Respondi-lhe que por
razões económicas dos meus pais, tinha optado pela Marinha a fim de poder
prosseguir estudos, mas que o Instituto Industrial não estava fora das minhas
aspirações.
Lá tivemos um bom bato papo, onde não faltaram os
comentários sobre os tais tipos estranhos que iam ouvir o que se passava nas
suas aulas na EI de TN. Depois, de mais um encontro ou outro, deixei-o de o ver
a frequentar o dito café. Admirado, questionei o proprietário (pessoa de confiança
para aqueles tempos de obscurantismo) se sabia do Professor, tendo-me
respondido que tinha sido preso pela PIDE.
OBRIGADO,
ENGENHEIRO! PORQUE COM A TUA LUTA DE RESISTÊNCIA, E DE ESCLARECIMENTO, COMO A
DE MUITOS OUTROS, AJUDASTE A ENCONTRAR AS CHAVES QUE SERVIRAM NOS FERROLHOS DAS
“PORTAS QUE ABRIL ABRIU”…