Congresso "Conquistas da Revolução" Intervenção de António Avelãs Nunes, Presidente da Assembleia Geral da ACR
Há 40 anos a nossa Pátria
deixou de ser “lugar de exílio” (Daniel Filipe) para os portugueses.
Durante quase 50 anos de “injustiça e de vileza”, de
“medo e de traição” (Sophia), o fascismo condenou-nos à opressão, à pobreza e
ao analfabetismo, à guerra colonial e à emigração em massa. Mas, como diz uma
canção do meu tempo de estudante de Coimbra, “é nas noites mais negras que as
estrelas brilham mais” (Fernando Machado Soares). E elas brilharam na noite negra
do fascismo, que encarcerou e assassinou muitas delas, como se as estrelas se
pudessem encarcerar e mesmo assassinar… Tudo com a cumplicidade e o apoio
activo do “mundo livre”, as chamadas democracias
ocidentais. Salazar bem poderia ter dito: a Europa está connosco; o mundo livre está connosco…
Mas o povo que faz a História nunca desertou da luta,
organizou-se e foi sempre caminhando, um passo atrás, dois passos à frente, rumo à vitória. E esta surgiu num Abril
cheio de cravos vermelhos, quando o povo fardado
pegou em armas para pôr fim à ditadura.
As portas que Abril
abriu (Ary dos Santos) conduziram directamente ao Maio dos trabalhadores.
Nesse 1º de Maio de 1974 começou, verdadeiramente, a revolução, porque nele se revelou e lançou a Aliança Povo-MFA. O povo já tinha enfeitado com cravos vermelhos as
espingardas dos soldados de Abril, dizendo com flores que não queria mais
guerra. Já tinha dado caça aos pides e já tinha libertado os presos políticos.
Já tinha começado a exercer os seus direitos e a gozar as suas liberdades. Mas
foi com o 1º de Maio que o povo impôs a Spínola e aos que o apoiavam o
reconhecimento imediato dos partidos políticos, a aceitação do papel dos
sindicatos, a libertação das câmaras municipais e das juntas de freguesia dos
fascistas que as ocupavam ilegitimamente.
Pelas portas que
Abril abriu entrou a festa, a liberdade e a democracia.
E, como o
povo é quem mais ordena, entraram também a criação do salário mínimo
nacional e a sua fixação em 3.300$00, duplicando ou triplicando o rendimento de
milhões de trabalhadores portugueses, que ficaram com um poder de compra
superior ao do atual salário mínimo.
E
entrou o reconhecimento do direito das mulheres a aceder à magistratura, à
diplomacia e a outros cargos públicos e a proclamação da igualdade de direitos
entre homens e mulheres.
E
entrou a generalização dos direitos da segurança social, o direito ao subsídio
de Natal, a generalização do direito a férias e ao subsídio de férias, o
aumento do abono de família e de outras prestações sociais. E entrou a
atribuição do direito a 90 dias de licença de parto e a consagração do direito
ao subsídio de desemprego.
As portas que Abril abriu
abriram o caminho da revolução.
Consciente disto mesmo, o povo, em aliança com o MFA, foi exercendo todos os
seus direitos, mesmo antes da sua consagração legal.
Foi
o povo que, logo no dia 25 de Abril, aboliu a censura e exerceu, sem
limitações, a liberdade de pensamento e de expressão, bem como a liberdade de
reunião, de associação e de manifestação, apesar de o MFA apelar às pessoas
para que ficassem em casa.
Foi
o povo que ocupou as sedes da União Nacional-Acção Nacional Popular, da Pide,
da Legião e da MP, deitando todo este lixo para o respectivo caixote.
Foi
o povo que exigiu nas ruas o fim da guerra colonial e o reconhecimento do
direito dos povos colonizados à autodeterminação e à independência, pondo fim à
resistência dos últimos bastiões do colonialismo.
Foi
o povo trabalhador que impôs os partidos políticos, os sindicatos e o direito à
greve, que saneou as autarquias e assumiu a administração das empresas
abandonadas ou sabotadas pelos patrões.
Foram os trabalhadores que chamaram a si o
controlo dos bancos que persistiam em sangrar o País e que ocuparam e
cultivaram as terras do latifúndio, sob o lema a terra a quem a trabalha, transformando os ideais em força
material: 550 UCPs e cooperativas passaram a cultivar mais de um milhão de
hectares de terra, dando emprego a mais de 50 mil trabalhadores e criando
riqueza como nunca antes, riqueza repartida por toda a comunidade.
Foi
o povo que impôs a nacionalização da banca, dos seguros e dos sectores
estratégicos, a reforma agrária, o controlo operário, a subordinação do poder
económico ao poder político democrático, pondo termo ao poder dos grupos
monopolistas que tinham sido a base de apoio do fascismo.
Foi
o povo que escreveu nas ruas, nos campos, nos mares, nas cidades, nas fábricas,
nas oficinas, nos quartéis, nas escolas, nos hospitais e nas repartições
públicas as normas que viriam a ser consagradas na CRP, promulgada pelo
Presidente Costa Gomes em 2 de Abril de 1976 para entrar em vigor no dia 25 de
Abril desse ano. E com a CRP veio a criação do SNS, o desenvolvimento e a
melhoria da escola pública, o poder local democrático.
Portugal
mudou radicalmente. E mudou para muito melhor. Apesar da situação herdada do
fascismo, apesar da situação internacional desfavorável (o mundo capitalista
vivia em 1973 em depressão complementada por acentuada inflação – a famosa estagflação) e apesar do boicote do
“mundo livre”, o período revolucionário foi, em Portugal, um período de
crescimento económico e de desenvolvimento social. Isto mesmo consta de um
Relatório da insuspeita OCDE, ao reconhecer que, em finais de 1975, a economia
portuguesa gozava de uma “saúde invejável”.
A
revolução portuguesa ajudou também a mudar o mundo, nesse mesmo ano em que o
poderoso exército do imperialismo sofreu uma derrota humilhante no Vietnam,
cujo povo obrigou os EUA a uma capitulação sem condições. A derrota do fascismo
colonialista em Portugal veio acelerar e consolidar a vitória dos movimentos de
libertação nas antigas colónias portuguesas, pondo fim ao último império
colonial e abrindo o caminho à derrota do apartheid
na África do Sul.
O
25 de Abril valeu a pena. Vale a pena celebrar Abril e continuar a defender os
valores de Abril e as conquistas de Abril!
E
as conquistas de Abril, as conquistas da revolução, andam
associadas a um homem, a um militar de
Abril, que encarnou, como nenhum outro, o espírito e a força da Aliança Povo-MFA, que acreditou nas
capacidades do povo português e que trabalhou, dia e noite, para tornar
realidade no nosso País o programa político que viria a ser plasmado na CRP.
Refiro-me, como já adivinharam, a Vasco
Gonçalves.
Por
mais que queiram ‘matar’ a sua memória pelo silêncio, ele faz parte da História
de Portugal nos anos da Revolução, porque ele fez História, sempre do lado dos trabalhadores e sempre ao lado dos trabalhadores.
Primeiro-Ministro, por indicação do MFA, de 18.7.1974 até 2.9.1975, os seus
Governos – apesar de deles fazerem parte, salvo o V Governo Provisório, forças
que, manifestamente, não queriam que a revolução avançasse – procuraram
acompanhar os anseios populares e deram ao povo trabalhador inteira liberdade
para exercer os seus direitos e para expressar a sua vontade.
O
Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves está associado aos momentos mais importantes
do processo revolucionário: o reconhecimento por Portugal do direito à
autodeterminação dos povos, incluindo a aceitação da independência dos
territórios coloniais; a legalização do direito à greve (DL nº 372/74,de 27 de
Agosto); o reconhecimento do direito dos trabalhadores desempregados aos
benefícios concedidos pela Previdência (DL nº 411/74, de 5 de Setembro); a
institucionalização do subsídio de desemprego (DL nº 169-D/75, de 31 de Março);
a actualização do salário mínimo para 4.000$00 (DL nº 292/75, de 16 de Junho);
o reconhecimento dos trabalhadores do estado (incluindo os militares e os
membros das forças militarizadas) a uma remuneração mínima e ao subsídio de
férias (DL nº 294/75, de 16 de Junho); a nacionalização dos bancos emissores –
Banco de Portugal, BNU e Banco de Angola (DL nºs 450, 451 e 452, de 13 de
Setembro de 1974); a legalização da gestão democrática das escolas (DL nº
806/74, de 31 de Dezembro); a nacionalização da banca e dos seguros e dos sectores
básicos e estratégicos da economia; o reconhecimento do controlo da produção
organizado pelos trabalhadores (DL nº 203-C/75, de 15 de Abril); a legalização
da reforma agrária, levada a cabo
pelo operariado agrícola nas terras do latifúndio, mas dando particular atenção
aos apoios a prestar pelo estado aos pequenos e médios agricultores,
especialmente no norte e centro do País, e também à proteção dos rendeiros com
a consagração de um novo regime do arrendamento rural (DL nº 201/75, de 15 de
Abril), e ao direito dos povos a administrar os baldios.
Vasco
Gonçalves não foi deputado à Assembleia Constituinte. Mas acreditou que era
possível construir em Portugal, como um dia escreveu, “uma via pacífica e
pluralista para a democracia e o socialismo, garantida pelas Forças Armadas”.
Por isso ele esteve com os trabalhadores, com os jovens, com as mulheres, com
os militares do MFA em todas as ações, em todas as lutas através das quais se
foram escrevendo, com tintas fortes, os princípios e os direitos que a CRP veio
consagrar. Ele esteve comprometido com todas as ações do povo português
-
para “defender a independência nacional, garantir os direitos fundamentais dos
cidadãos, estabelecer os princípios basilares da democracia, assegurar o
primado do estado de direito democrático e abrir caminho para uma sociedade
socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a
construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno” (do Preâmbulo da CRP);
-
para fazer da República portuguesa “uma República soberana, baseada na
dignidade humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa
sociedade sem classes” (art. 1º CRP);
-
para fazer de Portugal “um estado democrático, baseado na soberania popular, no
respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais e no pluralismo
de expressão e organização política democráticas, (...) com o objectivo de
assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o
exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras” (art. 2º CRP), um
estado cujas tarefas fundamentais são as de “garantir a independência nacional,
criando as condições políticas, económicas e sociais que a promovam, e (…)
abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem” (art. 9º CRP);
-
para fazer de Portugal um estado que “preconiza a abolição de todas as formas
de imperialismo, colonialismo e agressão, o desarmamento geral, simultâneo e
controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de
um sistema de segurança colectiva, com vista à criação de uma ordem internacional
capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos” (art. 7º
CRP).
A
expressão gonçalvismo foi inventada
pelos adversários da Revolução para reduzir o movimento revolucionário a uma
espécie de seguidismo messiânico e
para desvalorizar e depreciar o mais destacado timoneiro do movimento
revolucionário no seio do MFA. Ela é filha do medo de quem a inventou, medo da
revolução, medo do socialismo, e a violência e o destempero das calúnias que
ela pretendia (e ainda pretende) veicular foram subindo à medida do medo dos
seus inventores.
Criada para ser usada depreciativamente contra
Vasco Gonçalves e contra as políticas que este representava, esta expressão
acabou por se transformar numa homenagem a Vasco Gonçalves. Em 1977, ele
próprio descodificou esta campanha: “Hoje em dia, falar de gonçalvismo é identificar o gonçalvismo
com as conquistas da revolução”; “hoje em dia, a luta contra o gonçalvismo é, na realidade, uma luta
contra a Constituição”.
Verdade
de ontem, verdade de hoje. A CRP recorda-lhes a Revolução e as conquistas da
Revolução. E Vasco Gonçalves continua a ser para eles, ainda que o neguem
mil vezes, o rosto e o símbolo da Revolução de Abril.
Apesar
dos rombos que sofreu, a CRP continua a ser um obstáculo aos avanços da direita
revanchista e saudosa do passado, que continua a olhá-la com maus olhos, considerando-a
uma manifestação do império do mal. Outros
há, no entanto, no afã de enterrarem tudo o que cheire à Revolução de Abril,
têm procurado vestir a C RP com roupas de Novembro, desrespeitando-a sempre que
podem e mostrando-se sempre, em nome da ‘modernidade’ (eles acompanham sempre
as ‘modas’…), dispostos a revê-la (encostados à direita).
Para
nós, ela continua a ser um bom programa para reunir à volta dele os democratas
que queiram trabalhar para fazer de Portugal uma Pátria soberana e independente, um país mais livre, mais justo e mais fraterno, em que o poder
económico e financeiro esteja efectivamente subordinado ao poder político democrático.
Estes
mesmos que nunca quiseram nem querem nada que se pareça com a revolução
aliam-se à direita na obra inglória de ‘matar’ de novo Vasco Gonçalves, desta
vez pelo silêncio. Todos eles ‘encenaram’ as comemorações dos 40 anos do 25 de
Abril como se ele não tivesse existido. Mas ele existiu e vai ficar na
História, mesmo quando já ninguém se lembrar dos seus adversários e destes
‘encenadores’ que procuram tirar do retrato da História um dos seus actores
mais destacados.
“Homem
de um só rosto e de uma só fé”, como diria o velho Sá de Miranda, Vasco
Gonçalves sublinhou um dia que “o socialismo que queremos consiste (também) na
possibilidade de cada cidadão ser um homem de lisura, um homem limpo, um homem
íntegro, um homem transparente”. Parece que desenhava o seu próprio retrato,
porque Vasco foi isso mesmo: um homem de
lisura, um homem limpo, um homem íntegro, um homem transparente. Um homem que sempre olhou o povo olhos nos
olhos, e que disse num dos seus discursos: “Esta cara não se esconde, não muda,
não renuncia. É a minha cara. (…) É a cara a quem vocês pedirão contas”.
Este
era Vasco Gonçalves, “homem inteiro”, “homem verdade”, o “Vasco igual a povo”,
o Companheiro Vasco, símbolo maior da Aliança
Povo-MFA. Homem do MFA (“essa gente é o que é, eu sou um homem do MFA”,
como repetia tantas vezes), que faz da sua participação no 25 de Abril, ao lado
dos capitães, o momento mais alto da sua vida, não se esquece, porém, de
sublinhar que “é o povo que faz a História”.
Um
dia confidenciou ao seu Amigo João de Freitas Branco: “O que mais me espanta
nestes tipos é a falta de patriotismo”. Como patriota que foi, ele entendia,
porém, que “a Pátria são os portugueses de carne e osso, (…) é o povo que vive
dia a dia os eus problemas, mas que sofre e que tem alegrias, que constrói o
futuro, dia a dia”.
Termino
esta minha fala com uma mensagem de Vasco Gonçalves:
“O
futuro com que sonhei não é cada vez mais saudade, é, sim, cada vez mais,
necessidade imperiosa. Assim o povo o compreenda”.
É
nossa obrigação dizer-lhe que não nos
esconderemos, que não mudaremos
de rumo, que não renunciaremos aos
nossos ideais.
Com
o teu exemplo e a tua força, Companheiro Vasco, nós seremos a muralha de aço!
António Avelãs Nunes
Lisboa, 4 de Outubro de 2014