Notas da intervenção de Sérgio Ribeiro



Notas da intervenção de Sérgio Ribeiro no Debate - 35 Anos da Constituição da República. Acção e papel dos Governos de Vasco Gonçalves

1. Foi pouco mais de um ano. Foram cerca de 14 meses. Entre 18 de Julho de 1974 e 11 de Setembro de 1975. Precisamente 415 dias! (escreveu Armando Castro).
«… desde o congelamento das rendas urbanas e a nacionalização dos bancos emissores, a que procedeu o II Governo, e a lei de arrendamento rural, obra do III, até às nacionalizações dos sectores-chave e das empresas monopolistas, decretadas quase todas pelo IV Governo, e algumas pelo V, à reforma agrária do IV Governo, e à Lei do controlo operário, aprovado pelo V, mas que não chegou a ser promulgada…» (lembrou o prof. Teixeira Ribeiro).
Foram 415 dias.
E o antes e o depois desses 415 dias.
Mas foi nesses 415 dias que houve Povo-MFA, que houve "um homem na revolução". Vasco Gonçalves e cada um de nós que quis ser Povo e Futuro.

2. O “antes próximo” que vai de 25 de Abril de 1974 a 18 de Julho. Foi um tempo de expectativa, de hesitação, de encruzilhada, de “medir forças”.

3. Foi o tempo que se seguiu logo à “herança” de um país fechado e atrasado economicamente, com três características positivas (se me permitem dizer assim… como economista).
(i) um crescimento económico significativo desde o início dos anos 60, com a entrada para a EFTA, um começo de industrialização, a emigração que forçou a abertura de portas e a guerra colonial,
(ii) uma situação financeira (apesar de tudo) equilibrada, formando uma espécie de “almofada”,
(iii) uma estrutura capitalista de monopólios “nacionais” (7 grandes grupos), com escassa penetração do capital financeiro externo.

4. O que, de imediato, parecia derrotado ou irrecuperavelmente derrubado:
i) a situação de guerra colonial,
ii) esse “capitalismo doméstico”, que o poder político, na sua relação de forças, poderia controlar.

5. A “herança” má ou péssima:
i) de fora – a crise do capitalismo (o petróleo, a inconvertibilidade do dólar)
ii) de dentro – o estancar do “escape” da emigração (1,5 milhões de activos em menos de década e meia), a desmobilização militar, o retorno das colónias a acederem à independência.

5.1. À fortíssima pressão demográfica juntou-se
i) a fuga de capitais,
ii) o abandono de empresas,
iii) a sabotagem,
iv) o boicote até ao terrorismo.

5.2. O papel de Spínola nesse período e até 11 de Março de 1975, ligado ao capital (Siderurgia e Champalimaud – o MDES), empurrando numa direcção da encruzilhada e procurando impedir, por todos os meios, o caminhar em outra direcção.

6. A luta de classes – a “surpresa” do despertar das massas e da sua força – da resistência ao caminho novo.

7. Os dois níveis da política e da luta e a sua articulação:
i) de massas
ii) institucional.

8. A aliança Povo-MFA, com Vasco Gonçalves a ser a imagem da “ponte”/abraço – o cartoon de João Abel Manta.

9. 0 II Governo Provisório, os passos no caminho do avanço da democracia apoiados na dinâmica das massas e na aliança Povo-MFA contra a alternativa da contra-revolução recuperando a via capitalista nas novas condições.

10. Os III, IV e V Governos Provisórios e as respostas sempre avançando.

11. A falta de um plano para a economia que tinha, necessariamente, de ser planificada e com grande intervenção do Estado.

12. O Plano Melo Antunes (também Vitor Constância) no III, com demora e como travão, o Plano de medidas económicas de transição no IV, aprovado dentro dos Conselhos de Ministros e sabotado no exterior. A hipocrisia e as “ajudas” externas.

13. O V como governo de “aguentar” e avançar o possível institucionalmente, enquanto se clarificava a(s) relação(ões) de forças.

14. Do II ao V, 415 dias! Vasco Gonçalves, o homem a abater!

15. Depois, a dinâmica de massas não parou com o 25 de Novembro. A “embalagem” era grande…

16. Dois casos.

16.1. Constituição da República Portuguesa. A pressão das massas, Uma Constituição já (bem!) caracterizada, e acrescento que aprovada por uma Constituinte de 250 deputados dos quais apenas 30 eram do PCP. Referir o artigo 107º que estabelecia um limite para o rendimento pessoal máximo disponível, a fixar anualmente por lei, logo apagado na revisão de 1982… com a “ajuda” do FMI e da “Europa connosco”.

16.2. Creio que fui o último Director-Geral a ser nomeado por Vasco Gonçalves (do D-G do Emprego, em Agosto de 1975), vinha de chefe de delegação às Conferências Internacionais do Trabalho de 1974 e 75, fui à Conferência Mundial do Emprego de 1976, e sei ter provocado surpresa em Genève por ter resistido, como D-G do Emprego ao 25 de Novembro.

16.2.1 Negociou-se, então, um Plano de Médio Prazo para 1976-80 – o plano que faltava no caminho revolucionário e no quadro constitucional –, integrado em estratégia do Programa Mundial do Emprego, da OIT, e que foi elaborado por uma equipa multinacional de grande valia técnica – Plano “Manuela Silva”, de emprego e necessidades essenciais, com forte componente regional – aprovado em Conselho de Ministros (do 1º Governo Constitucional!) mas não levado à Assembleia da República, preterido pela célebre Lei Barreto, a da contra-reforma agrária.

16.2.2 Reforma agrária que, aliás, também poderia demonstrar como a dinâmica de massas de prolongou para além do 25 de Novembro e da derrota no nível institucional.

17. Terminaria com duas citações:

17.1. Uma, de Mário Murteira, de que relevo a sua actualidade:
Em termos de elementar bom senso é intuitivo que será indispensável um certo impulso de introversão: ou seja, aumento substancial da produção para satisfação do mercado interno. Isto é, privilegiar a agricultura – tirar partido económico da reforma agrária e não juros políticos para conquista de apoios à direita – intensificar o aproveitamento de recursos naturais, a substituição de importações, a consolidação de uma malha de indústrias básicas de controlo nacional, o lançamento de projectos de investimento com fraca componente de importações.
(…)
E, acima de tudo, é questão de plataforma honesta e patriótica de entendimento com os trabalhadores através das suas organizações representativas. Tal entendimento não será obviamente praticável se a política económica, em intenção ou na prática, admitir a diminuição dos salários reais e o agravamento do desemprego, como agora sucede.
Em pura lógica da divisão internacional do trabalho no mercado mundial (capitalista já se vê) tais tendências são inexoráveis, no caso português, nesta fase de transição e os teóricos do sistema apenas advogarão as pseudo-soluções clássicas dos “equilíbrios” de mercado: saída de mão-de-obra e entrada de capitais externos. Tais “soluções” não só nada têm a ver como o socialismo mas também se opõem à democracia: implicam um regime político autoritário fascista ou fascizante – chama-se a isto capitalismo de Estado dependente, e não carece de demonstração reconhecer que se trata de contra-modelo da concepção constitucional de organização económica e social do País.

17.2. Outra, de Francisco Pereira de Moura, que no decorrer da sessão me foi suscitada, que retiro de duas páginas de um diário e com que fecharia:
Luanda, 13 de Novembro de 1975
O camarada-presidente Agostinho Neto faz uma breve pausa, mexe o café, fita-me e lança pausadamente a pergunta que eu esperava e temia: “E o Governo português?” Referia-se à total ausência nas cerimónias da independência e a tudo quanto essa atitude significava. A voz era calma, mas não disfarçava um amargor que ia muito para além das divergências políticas do momento.
(…) tive de me recordar da missão internacional em que estava integrado para não desabafar e pôr o problema em toda a crueza – começava assim: “Que quer? Falta-nos o camarada Vasco”.