Histórias de Paris | Manuel Begonha - sócio da ACR

 

HISTÓRIAS DE PARIS
Manuel Begonha - sócio da ACR

Desde a juventude, Paris foi uma cidade que me atraiu política e culturalmente.
Era o horizonte do mundo que esperávamos encontrar e sentir o âmago da cultura em que fomos criados.
Por essas razões e também por outras mais pragmáticas, fui regularmente a Paris.
Irei descrever as viagens que considero mais relevantes.

Na primeira, ainda cadete da Escola Naval, como o dinheiro era pouco, aproveitávamos o retorno dos aviões alemães Noratlas das reparações que efectuavam em Alverca.
Ficávamos em Colónia, de onde seguíamos para toda a Europa mais a Norte. Para Paris a viagem foi de comboio, já com a dieta adequada que eram baguetes e Coca- Cola, bem mais energética do que actualmente.
Hospedava-me no Hotel de Lisbonne que embora modesto, ficava no centro e tinha um quarto decente.
Usei o método habitual para descobrir a cidade : mapa dividido pelas diagonais e assim, quase sempre a pé e por vezes de Metro, fui conhecendo os locais mais óbvios para um turista inexperiente.
Percorri Montparnasse, o Quartier Latin, trepei ao Sacré Coeur passando pela Place du Tertre, cheia de animação e cor, observando os pintores vestidos de génios para impressionar os turistas. 
Lá fui de Metro até ao Arco do Triunfo e Torre Eifel, esfalfando-me pelas Tulherias e Champs Elysées.
Passei pelas pontes do Sena e visitei a fachada do Folies Bergeres, Olympia e Moulin Rouge.
Mas em compensação, entrei nalgumas livrarias históricas como a Gallimard e a Achete.
Reservei dinheiro para entrar nos Invalides, ver o notável túmulo de Napoleão, visitar o Museu do Louvre e fazer um trajecto no bateau mouche.
Erro de principiante, foi ter apanhado o Metro para a Porte de Versailles, julgando assim alcançar o Palácio, o que me levou até ao fim da linha, localizada nuns subúrbios pouco animadores.
Nestas deambulações, recordo quase ter dormido em Notre Dame, num dos seus bancos seculares, tentando esquecer o cansaço, embalado pelo silêncio gregoriano que circula nas grandes catedrais.
Registei na visita ao Panteão, estar gravada no respectivo frontispicio a frase :

"Aux grands hommes la patrie reconnaissante" 

Á luz desta intenção, quantas injustiças cometidas, quantos não couberam lá dentro.
"O cherchez la femme" ficava para a noite
Era a descida aos caveaux e às jam sessions, emparedados em restos de muralhas.
Mas deparei com um problema.
Não podíamos dizer que éramos portugueses o que de imediato afastava qualquer companhia, porque Portugal era muito pouco considerado, devido aos imigrantes pobres e geralmente pouco cultos e ainda devido à guerra colonial.
A solução adoptada, embora pouco patriótica, era dizermos que éramos brasileiros e exibir uns tiques sambistas que não eram propriamente a nossa especialidade mas que acabaram por resultar.

Uma família conhecida dos meus pais de bastante peso, quer financeiro quer social, sabendo que eu estava para ir a Paris, ofereceu - se para contactar um amigo muito conceituado, procurador do Museu do Louvre que tinha uma filha que não se importaria de me acompanhar nesta visita.
Aceite o convite, lá me meti no avião. Chegado a 
Paris, confesso que quando vi a jovem companheira, sofri um choque. .
Não era apenas a figura, nem o rosto muito belo mas a graciosidade da postura e a elegância do andar que denunciavam de certo modo a sua profissão. Era bailarina da Ópera de Paris.
A propósito deste tipo de impressões marcantes, não resisto a fazer um parênteses, para descrever a primeira vez que vi a Maria Carrilho. 
Acabara de regressar a Portugal, vinda de Roma, onde terminara a sua formação académica em sociologia. Paralelamente foi activista do Paese Sera, correspondente da RTP e da EN. 
Trabalhou ainda com sucesso como modelo. 
Deslocou - se à CODICE da 5ª Divisão do EMGFA, para me entrevistar a propósito do seu novo livro intitulado "Portogallo la Via Militare". 
A sua entrada na sala onde estávamos, constituiu uma visão de beleza indescritível. 
O pintor Marcelino Vespeira que estava ao meu lado balbuciou : " Gostava de pintar esta mulher a comer um pêssego." 
E para fechar este parênteses das impressões causadas à primeira vista e que ficaram para uma vida, quero incluir a da minha mulher. 

Voltando então à jovem bailarina demonstrou ser sempre uma excelente e prestável apresentadora de uma outra face de Paris 
Fomos a vários locais já mencionados, outros que foram novidade como o Jeu de Paume, o Museu Orsay e por um capricho dela o cemitério Pere Lachaise, porque me quis mostrar, entre outros, o túmulo de Chopin por quem tinha uma especial admiração. 
No entanto, o que mais me marcou foi a visita a sua casa, situada na Ile Saint - Louis. 
Ficava num conjunto de grandes edifícios clássicos, com um elevado pé direito, com as características persianas em enormes janelas viradas para o Sena. Era um hino ao bom gosto. 
O seu interior, parecia saído de um filme de Milos Forman. 
Uma vez que seu pai tinha uma função destacada no Louvre, este proporcionou-me uma vista guiada, com acesso a locais e obras disponíveis a muito pouca gente. 
Finalmente levou - me a visitar a Opera e a assistir a alguns pormenores menos conhecidos, do laborioso esforço a que é obrigada quem quer ser bailarina do Ballet de Paris. 
Desta minha amiga vim a saber que tivera um envolvimento amoroso com o realizador espanhol Carlos Saura. 

Esta visita tinha características distintas das anteriores. 
Não era meramente turística, ocorreu pouco antes do 25 de Abril e foi relativamente curta. 
Comecei por me encontrar com Jorge Reis que além de escritor, autor do excelente livro "Matai-vos uns aos outros" e activista político era a voz das Actualidades Francesas que víamos nos cinemas a anteceder os filmes. 
Foi uma companhia muito gratificante pelos cafés literários dos mais significativos de Paris, nas visitas às grandes livrarias, ao mundo efervescente de Montparnasse e do Quartier Latin. 
Consegui ainda encontrar o Luís Cilia porque pretendia trazer para Portugal o seu disco que incluía a canção "É preciso avisar toda a gente", com um poema exaltante de João Apolinário que mais tarde, viria a conhecer através de Ramiro Correia de quem era amigo. 
Foi um sucesso porque foi transmitido num programa radiofónicos nocturno do maior prestígio. 
Ainda me desloquei ao estúdio da pintora Vieira da Silva. 
Mas este ciclo não haveria de ficar por aqui, porque ainda tive oportunidade de atingir o meu Óscar, ao ser apresentado à actriz Marie Laforêt

A última viagem foi recente e com amigos, agora com as comodidades que o dinheiro permite. 
Passei a comer em bons restaurantes e a assistir a alguns espectáculos. 
Larguei as intermináveis caminhadas recorrendo ao Uber. 
Não pude revisitar Notre Dame que estava em obras após o incêndio que sofrera mas como estava perto ainda fiz umas compras na Livraria Shakespeare. 
O tempo decorrido consolidou a ideia que tinha acerca da evolução do panorama cultural parisiense. 
Foi permeável à cultura anglo-saxónica e acabou praticamente por se lhe submeter. 
Onde está a canção desde Edith Piaf a George Brassens, os escritores desde Marguerite Duras a Albert Camus, os inovadores do pensamento desde André Breton a J. P. Sartre, os mimos como Marcel Marceau, os coreografos desde Maurice Bejart a Roland Petit, os realizadores cinematográficos desde Jean Renoir a François Truffaut? 
Onde está Paris da nossa juventude, farol da liberdade e da cultura, hoje indigente e em declínio que se deixou enfeitar com penas de pavão bélicas, liderada por um patético Macron? 
Olhando à volta e ao percorrer as ruas de Paris de regresso ao aeroporto, sentimos que algo vai morrendo connosco.