25 de Novembro, o depois
Intervenção de Jorge Sarabando na apresentação do livro de Ribeiro Cardoso
Unicepe, 27 de Novembro de 2023
Sabemos: as revoluções são sempre uma obra colectiva, destinos individuais que se cruzam num dado momento histórico e desencadeiam um processo de transformação. Destacam-se depois alguns protagonistas de quem se desvela um recorte biográfico. A narrativa mais comum centra-se no fluir dos acontecimentos, na ruptura operada, nos actos políticos e seus efeitos, no confronto de interesses sociais, no movimento da história e seu significado. Mas poucas vezes se detém no ser humano concreto, naqueles muitos, como em Portugal, que fizeram de um golpe de Estado uma revolução e transformaram uma ditadura revelha de 48 anos numa democracia desenvolvida, dotada de uma Constituição que consagra direitos sociais e continua em vigor, como carta de unidade de todos os democratas e lei matricial que a todos os portugueses obriga.
Um dos grandes méritos do livro de Ribeiro Cardoso é, justamente, o de trazer até nós o nome e o percurso de vida de capitães de Abril que pouco estiveram na ribalta, na maioria ignorados na historiografia corrente, a quem as instituições vigentes maltrataram, intentaram humilhar e vencer, ou mesmo eliminar, mas sem eles, e o seu contributo, a Revolução não teria sido possível, pois o MFA foi um todo e com todos cumpriu a sua missão e o seu programa.
O golpe de 25 de Novembro evocado ainda hoje como acto salvífico da democracia e da liberdade, tratou sem respeito pela legalidade democrática e por valores humanos essenciais militares do MFA da primeira hora e de todas as horas, entre centenas de oficiais e sargentos, e de praças da Armada, além de mais de uma centena de profissionais da Comunicação Social que foram demitidos das suas funções, e só muitos anos depois viriam a ser reparados das injustiças cometidas, para alguns tarde de mais, tema do anterior livro de Ribeiro Cardoso “O 25 de Novembro e os media estatizados”.
Pelas páginas do livro hoje apresentado passam situações indignas em que militares de Abril foram presos sem acusação ou culpa formada, mantidos incomunicáveis, sujeitos a tratamentos cruéis, como foi o caso de 1ºTenente Miguel Judas, que fora membro do Conselho da Revolução, levado a visitar seu pai no hospital, de noite e algemado. Outros actos abusivos das autoridades militares são descritos com rigor e verdade comprovada. Embora nenhum crime justificasse tais procedimentos, a verdade é que os militares de Abril assim maltratados não foram acusados de qualquer acto ilícito em concreto. Militares do MFA, alguns oficiais superiores, membros do Conselho da Revolução, foram detidos e presos sem o mínimo respeito pelos seus direitos como militares e como cidadãos. Como foi possível?
Falemos, então, do 25 de Novembro.
Antecedido pelo Pronunciamento de Tancos, em Setembro, em que foram afastados Vasco Gonçalves, Primeiro-ministro, Eurico Corvacho, Comandante da Região Militar Norte, e outros membros do Conselho da Revolução, e extintos órgãos democráticos das Unidades militares então existentes, o 25 de Novembro foi um golpe de direita que não chegou tão longe quanto os seus urdidores pretendiam.
Foi meticulosamente preparado, com a contratação atempada de ex-comandos para reforço do Regimento de Comandos, com a transferência em sigilo das barras de ouro do Banco de Portugal para o Porto, com a preparação da deslocação para esta cidade do Governo e da Assembleia Constituinte, com o afastamento cirúrgico de militares de esquerda de funções de chefia e a transferência de forças para a Base de Cortegaça. Dias antes, estava já redigida a resolução, com aprovação garantida, segundo o seu autor, prof. Jorge Miranda, em que a Assembleia Constituinte, reunida a norte, ganharia novos poderes e seria extinto o Conselho da Revolução. Escreveu um dos chefes da rede terrorista da extrema direita que “estavam preparados grupos para executar quem quer que fosse”. A norte ficaria o comando das tropas que marchariam sobre a inventada “Comuna de Lisboa”. O seu objectivo era dividir o País, provocar um banho de sangue e esmagar as forças de esquerda. Não conseguiram. A convergência de democratas e patriotas evitou, no limite, o pior.
A “Comuna de Lisboa” era um cenário ficcionado, como se comprovou, mas instrumental para os objectivos de quem urdiu o golpe. Diziam que o País foi salvo duma ditadura comunista de tipo soviético, e ainda hoje o repetem com certa prosápia, sem que saibam apontar um único facto a fundamentar tão delirante acusação. Quem conhecer a história de países onde foi aplicado o “Método Jacarta” ou foram alvo da “Operação Condor” na América do Sul, com a CIA no comando, encontrará efabulações deste género.
Diria mais tarde o General Vasco Gonçalves: “ O plano não veio a ser concretizado porque a esquerda militar, o Partido Comunista e as forças progressistas não se deixaram envolver na provocação do 25 de Novembro e porque Costa Gomes chamou a si a dependência de todas as unidades militares do País”.
E diria o General Pezarat Correia, que pertenceu ao Grupo dos nove: “A democracia e a liberdade vingaram, não por causa do 25 de Novembro, mas apesar do 25 de Novembro”.
Disse também o General Franco Charais, igualmente do Grupo dos nove: “…,o 25 de Novembro não foi uma tentativa de golpe de Estado da esquerda revolucionária e/ou do PCP. Mas uma simples rebelião de para-quedistas abandonados pelas suas chefias”.
O livro de Ribeiro Cardoso permite reconstituir o percurso profissional dos militares do MFA presos na sequência do 25 de Novembro, restituir o seu bom nome e honradez, soezmente postos em causa.
Passado algum tempo depois de Novembro, diria Vasco Lourenço, então oficial General, comandante da Região Militar de Lisboa, um dos vencedores aparentes do Golpe, numa alocução às tropas, em Setúbal, como se lê na pg.53: “Continuo a ver cair nas prisões camaradas que nos são queridos. A eles nos ligam laços de amizade, camaradagem, de luta em comum que não são fáceis de destruir ou esquecer. Porque nos dividimos nós? Por questões puramente militares? Quem nos divide?”
Sim, quem dividiu o MFA?
Também neste plano se encontram no livro pistas valiosas que ajudam a encontrar respostas, a encontrar saídas nos labirintos de Novembro.
Mas vale a pena uma reflexão.
A aliança Povo-MFA era a expressão política de uma vasta frente social anti-monopolista e a sua acção revelou-se decisiva no avanço do processo revolucionário e na construção da democracia. Quebrar a aliança, dividir o MFA e dividir o movimento popular tornou-se um desígnio estratégico do grande capital ainda movente e do imperialismo norte-americano e suas extensões europeias, visando travar a revolução ou, se necessário e possível, destruí-la. Era imperioso formar uma outra aliança política capaz de travar o curso dos acontecimentos, reduzir a base social de apoio da Revolução, procurando afastar as camadas intermédias e as faixas mais conservadoras da população em relação às classes trabalhadoras. Foi esta a direcção tomada, que só foi possível concretizar por uma aliança espúria entre sectores democráticos e a direita mais extremada.
Outro dos méritos desta obra, ainda incompleta, pois faltam 45 capítulos escritos pelo autor, é incidir sobre um dos períodos menos estudados do processo revolucionário, a sua fase final entre Novembro de 75 e Abril de 76, quando foi promulgada a Constituição, firme compromisso do MFA.
Foi o tempo dos saneamentos à esquerda, de varrer dos quartéis, dos órgãos de comunicação social, por vezes a partir de listas de antemão preparadas, de várias instâncias do Estado, do sector público da economia, então dominante, centenas de pessoas, que podiam ser as mais competentes e qualificadas, mas tinham de ser afastadas, por agirem de acordo com os ideais emancipadores da Revolução de Abril, para serem substituídas por verdadeiros comissários políticos, criaturas mais dóceis e serviçais, algumas chegadas das alfurjas da contra-revolução.
Foi o tempo em que se criaram expedientes, como o conhecido Relatório das Sevícias, um “nada jurídico” como lhe chamou um conjunto de reputados juristas, mas que serviu para lesar a carreira profissional de destacados militares de Abril, que não puderam ser acusados de qualquer envolvimento no 25 de Novembro.
Foi o tempo em que a direita tentou evitar a promulgação da Constituição e submetê-la a um referendo.
Foi o tempo de maior incidência dos atentados bombistas, que provocaram mais vítimas mortais, de que é um trágico exemplo o Padre Max e a jovem estudante Maria de Lurdes, assassinados em Vila Real no dia em que a Constituição foi aprovada, 2 de Abril de 76.
É útil aqui lembrar a acção da rede terrorista da extrema-direita, (ELP, MDLP, Maria da Fonte e outros), com centro logístico e comando na Espanha da ditadura franquista, que tão negativamente influenciou os primeiros passos da democracia nascida em Abril. Entre Maio de 75 e Abril de 77, foram cometidos 566 actos terroristas, entre os quais 310 atentados bombistas e 136 assaltos, a sedes de partidos de esquerda, de sindicatos, a Câmaras Municipais, na simulação de um levantamento popular.
Apesar dos esforços da Polícia Judiciária do Porto, então dirigida pelo Magistrado Dr. Álvaro Guimarães Dias, poucos foram os criminosos presos e condenados.
Na própria noite de 25 de Novembro, no Porto, foram destruídos à bomba os carros de três democratas, o advogado António Taborda, o engenheiro José Júlio Carvalho e o arquitecto Estrela Santos, e à porta do Sindicato dos Vidreiros foi morto a tiro um dos seus dirigentes, o operário António Almeida e Silva, por um bando de arruaceiros fascistas.
Foi o tempo em que uma manifestação pacífica de familias de militares de Abril presos em Custóias, alguns citados no livro hoje presente, foi reprimida a tiro pela guarda de serviço, provocando 4 vítimas mortais, 3 trabalhadores do Porto e um jornalista estrangeiro, e vários feridos graves entre os quais uma criança, sem que ninguém tenha sido responsabilizado.
Foi, então, este tempo de violência, marcada pela impunidade, a que o discurso dominante chama de normalização. Veio depois, com os governos constitucionais e as novas maiorias, a contra-revolução legislativa. Primeiro com novas leis, procurando contornar os limites constitucionais, depois com revisões da Constituição, sobretudo as de 82 e de 89, que em parte a desfiguraram, e com as privatizações permitiram reconstituir o poder dos grupos financeiros que dominaram o País durante a ditadura.
Este livro é uma homenagem a militares do MFA dignos, coerentes, íntegros.
A eles, a todos os militares do MFA, à luta do povo português, devemos o viver numa democracia, que tem uma Constituição, que urge defender e cumprir.
Aqui fica uma sentida palavra de gratidão ao Albino Ribeiro Cardoso, um jornalista que honra a profissão que abraçou, por este valioso contributo para o conhecimento da verdade histórica. Com o seu trabalho paciente, sério, isento, escrupuloso, determinado, podemos conhecer muitos daqueles militares, como pessoas, cidadãos, seres humanos, que tudo arriscaram para que Portugal encontrasse a liberdade e a libertação.