A CONSTITUIÇÃO DE ABRIL Foi aprovada faz hoje dia 2 de Abril 37 anos






Nesta data recordamos um texto actual,oportuno e esclarecedor de MANUEL GUSMÃO.


1.
«Nascida da Revolução de Abril de 1974, a Constituição da República Portuguesa, promulgada a 2 de Abril de 1976, legitima e ratifica a revolução. Ou seja: acolhe as suas principais conquistas e consagra o sentido da sua dinâmica revolucionária: (cito do preâmbulo) “abrir o caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno”.
A Assembleia Constituinte aprovava e decretava, assim, uma Constituição que era profundamente democrática e um justificado motivo de orgulho dos portugueses perante os outros povos do mundo.»

2
«A Constituição de 1976 forma um todo estruturado, coerente e consistente. 
Não há duas Constituições como alguns pretenderam, para a sabotarem. Uma, a boa, seria a dos direitos e da democracia política. Outra, a má ou a péssima, a da organização económica e social do estado, a da transição para o socialismo. Na sua génese, no seu articulado e no projecto que configura, ela exprime uma tripla correlação.»

2.1.
«A1ª é a correlação entre uma sustentada vontade de ruptura com o passado autoritário e fascista, e a afirmação dos direitos, liberdades e garantias democráticos.
Fruto dos mais fundos valores, convicções e ideais da resistência anti-fascista, a Constituição manifesta uma concepção moderna e integrada dos direitos. Diferentemente da concepção liberal que considera como direitos fundamentais, apenas os direitos civis, entendidos como direitos individuais e políticos, a Constituição da República integra os direitos económicos, sociais e culturais, e especificamente os direitos dos trabalhadores. Enquanto na tradição liberal, os direitos a proteger apenas requerem uma suposta omissão de intervenção do Estado; a concepção que a Constituição acolhe é mais exigente. A efectivação desse leque mais vasto de direitos, que podem ser simultaneamente individuais e colectivos, requer uma acção de discriminação positiva, ou obrigações da parte do Estado.
Por isso, o artº 50 (garantias e condições de efectivação) enunciava assim o princípio geral que valia para todo o universo dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais:
A apropriação colectiva dos principais meios de produção, a planificação do desenvolvimento económico e a democratização das instituições são garantias e condições para a efectivação dos direitos e deveres económicos sociais e culturais. 
Por isso, também, a seguir ao artigo 51º, que consagrava o direito ao trabalho, se seguia um outro que definia as obrigações do Estado quanto à efectivação desse direito. E a seguir ao artigo que consagrava os ditreitos do trabalhadores, o art.º 53º, se seguia um outro dedicado igualmente a definir as obrigações cometidas ao Estado para “assegurar as condições de trabalho, de retribuição e de repouso a que os trabalhadores têm direito”.» 

2.2. 
«A 2ª correlação é a da amplitude e profundidade da democracia política e da sua unidade com a democracia económica, social e cultural.
A Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da representação como princípio fundamental da democracia; mas não reduz os direitos políticos à representação eleitoral, tal como não reduz a democracia política à democracia representativa, antes procura estimular o exercício imprescindível da participação democrática. 
Art.º 112- A participação directa e activa dos cidadãos na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático.
Assim, a Constituição colocava como indissolúveis os laços entre a democracia política e a democracia económica e, social e cultural. A unidade entre essas instâncias da democracia é o que faz com que cada uma delas seja função e factor das outras. 
Quanto ao que diz respeito à organização económica, o texto constitucional acolhe e consagra as grandes conquistas revolucionárias; a saber, as nacionalizações, o controlo de gestão e a Reforma Agrária.
No art.º 83 escrevia-se expressamente “Todas as nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 são conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras .”
Mas a Constituição não se limitava a legitimar as novas formas de propriedade que tinham nascido da revolução. Ela dava-lhes um sentido social, apresentava uma dinâmica e objectivos para o seu desenvolvimento e definia expressamente os seus destinatários e beneficiários. Assim, no art.º 81º, em que se definiam as incumbências prioritárias do Estado lia-se:

a) Promover o aumento do bem-estar social e económico do povo, em especial das classes mais desfavorecidas;

b) Promover a igualdade entre os cidadãos, através da transformação das estruturas económico-sociais;

c) Operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento;

g) Eliminar e impedir a formação de monopólios, através de nacionalizações ou de outras formas, bem como reprimir os abusos do poder económico e todas as práticas lesivas do interesse geral; 

h) Realizar a Reforma Agrária;

i) Eliminar progressivamente as diferenças sociais e económicas entre a cidade e o campo.

o) Estimular a participação das classes trabalhadoras e das suas organizações na definição, controlo e execução de todas as grandes medidas económicas e sociais.
A Constituição proclamava a subordinação do poder económico ao poder politico democrático.»

2.3.
«A terceira correlação era a que unia a democracia e a vontade de ruptura em relação ao passado de submissão nacional e de opressão colonialista, com a afirmação da independência e a soberania nacionais.
Assim, o Art.º 7º afirma

1. Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do direito dos povos à autodeterminação e à independência […] da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com o de todos os outros povos […]

2. Portugal preconiza […] o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança colectiva […].

3. Portugal reconhece o direito à insurreição armada contra todas as formas de opressão, nomeadamente contra o colonialismo e o imperialismo […] »

3. 
«A CRP de 1976 é um texto avançado, coerente e harmonioso. Entretanto, a vida da Assembleia Constituinte não fora fácil. Houve quem quisesse retardar o ritmo dos seus trabalhos; Houve quem tentasse provocar um choque entre a dinâmica eleitoral e a dinâmica revolucionária. Quem tentasse transformá-la na câmara de ressonância das vozes já empenhadas na contra-revolução. Houve até quem quisesse deslocalizá-la, na esperança de a furtar à legítima pressão popular. Mas a Assembleia Constituinte resistiu e constitucionalizou a Revolução portuguesa.» 


COMO FOI ISSO POSSÍVEL?


«A Constituição de 1976 foi uma plataforma que uniu e representou a aliança instável e precária de um conjunto de forças políticas, sociais e militares. Ela exprime, no seu texto, uma determinada correlação de forças de classe.
Ela é redigida, aprovada e decretada por uma Assembleia Constituinte onde a correlação de forças era, á partida, menos favorável do que a que existia no país. Mas esta pressionava aquela. A força das massas em movimento, nas fábricas e nas empresas, nos campos do Alentejo e do Ribatejo, nas escolas e nas ruas ecoava em S. Bento, de forma irresistível.

Nesse sentido, podemos dizer que quem redigiu a CRP não foram apenas os deputados constituintes. Também a classe operária, os trabalhadores e as massas populares, pela sua iniciativa e acção, o seu trabalho e a sua luta, a redigiram. Não se trata de uma figura de retórica gasta. Foram, de facto, as massas populares que, embora sem ter conseguido o poder de estado, tiveram a força suficiente, para obterem, num curto espaço de tempo, profundas conquistas, económicas sociais e políticas. Tão profundas que desde a aprovação da Constituição [há 37 anos], as forças que têm suportado a política de direita têm concentrado esforços para as erradicar da realidade portuguesa, e apagar da consciência e das convicções dos portugueses.
São [37 anos] de contra-revolução que foram também, a partir de 1982, anos de revisão constitucional;[ 37 anos ]de governos a não cumprirem a Constituição. Durante todos estes anos a Constituição foi responsabilizada por todos os males e bloqueios da sociedade portuguesa. A hipocrisia e a má-fé acusaram a Constituição de Abril de ser prolixa e demasiado ideológica. Mas o que efectivamente os incomodava era que falava demais em trabalhadores, em transição para o socialismo e usava outras palavras terríveis como essas. O que queriam era substituir uma ideologia por outra. Assim, A CRP foi combatida e não foi cumprida, quer por omissão, quer por grosseira desfiguração. Ainda hoje há quem queira continuar a destruí-la. E voltam a lançar mão desse imenso logro, dessa tremenda desonestidade intelectual, que consiste em afirmar que a Constituição é a responsável por uma política feita contra ela.
É obra, amigos: [37 anos ]a destruírem o que levou um pouco menos de 2 anos a conseguir, um pouco menos de um ano a escrever. São [37 anos] que nos trouxeram a esta situação à beira de um desastre nacional. São [trinta e sete] anos em que se foi formando uma real coligação de interesses entre um partido que mantém no seu nome a designação de “socialista”, mas que enterrou na sua prática política todo e qualquer “socialismo” e os dois partidos da direita clássica. Começaram por cedências à direita para a acalmarem, diziam. Depois competiram com ela na disputa de um centro que, graças a essa competição, descaía cada vez mais para a direita. Enterraram, no pântano do neo-liberalismo, o móvel com a gaveta, onde tinham fechado, para nunca mais, o socialismo. Agora concorrem arduamente com o PSD e o CDS, pela liderança da política de direita.
Tenhamos, entretanto, confiança, amigos. 


O que foi possível uma vez, na história, a irrupção do futuro, nas lutas do presente, será possível outra vez.» Manuel Gusmão