Nesta data recordamos um texto actual,oportuno e
esclarecedor de MANUEL GUSMÃO.
1.
«Nascida da Revolução de Abril
de 1974, a Constituição da República Portuguesa, promulgada a 2 de
Abril de 1976, legitima e ratifica a revolução. Ou seja: acolhe as
suas principais conquistas e consagra o sentido da sua dinâmica
revolucionária: (cito do preâmbulo) “abrir o caminho para uma
sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português,
tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e
mais fraterno”.
A Assembleia Constituinte aprovava e decretava,
assim, uma Constituição que era profundamente democrática e um
justificado motivo de orgulho dos portugueses perante os outros povos
do mundo.»
2
«A Constituição de 1976 forma um todo
estruturado, coerente e consistente.
Não há duas
Constituições como alguns pretenderam, para a sabotarem. Uma, a
boa, seria a dos direitos e da democracia política. Outra, a má ou
a péssima, a da organização económica e social do estado, a da
transição para o socialismo. Na sua génese, no seu articulado e no
projecto que configura, ela exprime uma tripla correlação.»
2.1.
«A1ª
é a correlação entre uma sustentada vontade de ruptura com o
passado autoritário e fascista, e a afirmação dos direitos,
liberdades e garantias democráticos.
Fruto dos mais fundos
valores, convicções e ideais da resistência anti-fascista, a
Constituição manifesta uma concepção moderna e integrada dos
direitos. Diferentemente da concepção liberal que considera como
direitos fundamentais, apenas os direitos civis, entendidos como
direitos individuais e políticos, a Constituição da República
integra os direitos económicos, sociais e culturais, e
especificamente os direitos dos trabalhadores. Enquanto na tradição
liberal, os direitos a proteger apenas requerem uma suposta omissão
de intervenção do Estado; a concepção que a Constituição acolhe
é mais exigente. A efectivação desse leque mais vasto de direitos,
que podem ser simultaneamente individuais e colectivos, requer uma
acção de discriminação positiva, ou obrigações da parte do
Estado.
Por isso, o artº 50 (garantias e condições de
efectivação) enunciava assim o princípio geral que valia para todo
o universo dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais:
A
apropriação colectiva dos principais meios de produção, a
planificação do desenvolvimento económico e a democratização das
instituições são garantias e condições para a efectivação dos
direitos e deveres económicos sociais e culturais.
Por
isso, também, a seguir ao artigo 51º, que consagrava o direito ao
trabalho, se seguia um outro que definia as obrigações do Estado
quanto à efectivação desse direito. E a seguir ao artigo que
consagrava os ditreitos do trabalhadores, o art.º 53º, se seguia um
outro dedicado igualmente a definir as obrigações cometidas ao
Estado para “assegurar as condições de trabalho, de retribuição
e de repouso a que os trabalhadores têm direito”.»
2.2.
«A
2ª correlação é a da amplitude e profundidade da democracia
política e da sua unidade com a democracia económica, social e
cultural.
A Constituição da República Portuguesa consagra o
princípio da representação como princípio fundamental da
democracia; mas não reduz os direitos políticos à representação
eleitoral, tal como não reduz a democracia política à democracia
representativa, antes procura estimular o exercício imprescindível
da participação democrática.
Art.º 112- A participação
directa e activa dos cidadãos na vida política constitui condição
e instrumento fundamental de consolidação do sistema
democrático.
Assim, a Constituição colocava como indissolúveis
os laços entre a democracia política e a democracia económica e,
social e cultural. A unidade entre essas instâncias da democracia é
o que faz com que cada uma delas seja função e factor das
outras.
Quanto ao que diz respeito à organização
económica, o texto constitucional acolhe e consagra as grandes
conquistas revolucionárias; a saber, as nacionalizações, o
controlo de gestão e a Reforma Agrária.
No art.º 83 escrevia-se
expressamente “Todas as nacionalizações efectuadas depois de 25
de Abril de 1974 são conquistas irreversíveis das classes
trabalhadoras .”
Mas a Constituição não se limitava a
legitimar as novas formas de propriedade que tinham nascido da
revolução. Ela dava-lhes um sentido social, apresentava uma
dinâmica e objectivos para o seu desenvolvimento e definia
expressamente os seus destinatários e beneficiários. Assim, no
art.º 81º, em que se definiam as incumbências prioritárias do
Estado lia-se:
a) Promover o aumento do bem-estar social e
económico do povo, em especial das classes mais desfavorecidas;
b)
Promover a igualdade entre os cidadãos, através da transformação
das estruturas económico-sociais;
c) Operar as necessárias
correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do
rendimento;
g) Eliminar e impedir a formação de monopólios,
através de nacionalizações ou de outras formas, bem como reprimir
os abusos do poder económico e todas as práticas lesivas do
interesse geral;
h) Realizar a Reforma Agrária;
i)
Eliminar progressivamente as diferenças sociais e económicas entre
a cidade e o campo.
o) Estimular a participação das classes
trabalhadoras e das suas organizações na definição, controlo e
execução de todas as grandes medidas económicas e sociais.
A
Constituição proclamava a subordinação do poder económico ao
poder politico democrático.»
2.3.
«A terceira correlação
era a que unia a democracia e a vontade de ruptura em relação ao
passado de submissão nacional e de opressão colonialista, com a
afirmação da independência e a soberania nacionais.
Assim, o
Art.º 7º afirma
1. Portugal rege-se nas relações
internacionais pelos princípios da independência nacional, do
direito dos povos à autodeterminação e à independência […] da
solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência
nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com o de
todos os outros povos […]
2. Portugal preconiza […] o
desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos
blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de
segurança colectiva […].
3. Portugal reconhece o direito à
insurreição armada contra todas as formas de opressão,
nomeadamente contra o colonialismo e o imperialismo […] »
3.
«A
CRP de 1976 é um texto avançado, coerente e harmonioso. Entretanto,
a vida da Assembleia Constituinte não fora fácil. Houve quem
quisesse retardar o ritmo dos seus trabalhos; Houve quem tentasse
provocar um choque entre a dinâmica eleitoral e a dinâmica
revolucionária. Quem tentasse transformá-la na câmara de
ressonância das vozes já empenhadas na contra-revolução. Houve
até quem quisesse deslocalizá-la, na esperança de a furtar à
legítima pressão popular. Mas a Assembleia Constituinte resistiu e
constitucionalizou a Revolução portuguesa.»
COMO FOI ISSO POSSÍVEL?
«A Constituição de 1976 foi uma
plataforma que uniu e representou a aliança instável e precária de
um conjunto de forças políticas, sociais e militares. Ela exprime,
no seu texto, uma determinada correlação de forças de classe.
Ela
é redigida, aprovada e decretada por uma Assembleia Constituinte
onde a correlação de forças era, á partida, menos favorável do
que a que existia no país. Mas esta pressionava aquela. A força das
massas em movimento, nas fábricas e nas empresas, nos campos do
Alentejo e do Ribatejo, nas escolas e nas ruas ecoava em S. Bento, de
forma irresistível.
Nesse sentido, podemos dizer que quem
redigiu a CRP não foram apenas os deputados constituintes. Também a
classe operária, os trabalhadores e as massas populares, pela sua
iniciativa e acção, o seu trabalho e a sua luta, a redigiram. Não
se trata de uma figura de retórica gasta. Foram, de facto, as massas
populares que, embora sem ter conseguido o poder de estado, tiveram a
força suficiente, para obterem, num curto espaço de tempo,
profundas conquistas, económicas sociais e políticas. Tão
profundas que desde a aprovação da Constituição [há 37 anos], as
forças que têm suportado a política de direita têm concentrado
esforços para as erradicar da realidade portuguesa, e apagar da
consciência e das convicções dos portugueses.
São [37 anos] de
contra-revolução que foram também, a partir de 1982, anos de
revisão constitucional;[ 37 anos ]de governos a não cumprirem a
Constituição. Durante todos estes anos a Constituição foi
responsabilizada por todos os males e bloqueios da sociedade
portuguesa. A hipocrisia e a má-fé acusaram a Constituição de
Abril de ser prolixa e demasiado ideológica. Mas o que efectivamente
os incomodava era que falava demais em trabalhadores, em transição
para o socialismo e usava outras palavras terríveis como essas. O
que queriam era substituir uma ideologia por outra. Assim, A CRP foi
combatida e não foi cumprida, quer por omissão, quer por grosseira
desfiguração. Ainda hoje há quem queira continuar a destruí-la. E
voltam a lançar mão desse imenso logro, dessa tremenda
desonestidade intelectual, que consiste em afirmar que a Constituição
é a responsável por uma política feita contra ela.
É obra,
amigos: [37 anos ]a destruírem o que levou um pouco menos de 2 anos
a conseguir, um pouco menos de um ano a escrever. São [37 anos] que
nos trouxeram a esta situação à beira de um desastre nacional. São
[trinta e sete] anos em que se foi formando uma real coligação de
interesses entre um partido que mantém no seu nome a designação de
“socialista”, mas que enterrou na sua prática política todo e
qualquer “socialismo” e os dois partidos da direita clássica.
Começaram por cedências à direita para a acalmarem, diziam. Depois
competiram com ela na disputa de um centro que, graças a essa
competição, descaía cada vez mais para a direita. Enterraram, no
pântano do neo-liberalismo, o móvel com a gaveta, onde tinham
fechado, para nunca mais, o socialismo. Agora concorrem arduamente
com o PSD e o CDS, pela liderança da política de direita.
Tenhamos,
entretanto, confiança, amigos.
O que foi possível uma
vez, na história, a irrupção do futuro, nas lutas do presente,
será possível outra vez.» Manuel Gusmão